domingo, 2 de outubro de 2022

HAVERÁ SANGUE – A FEBRE DO OURO NEGRO

    

        


 
Em 1956, George Stevens, um dos grandes produtores e realizadores vindo da época dourada de Hollywood e depois de, juntamente com John Ford, John Huston, Frank Capra e William Wyler ter ido combater e fazer reportagens durante a IIª Guerra Mundial na Europa e no Pacífico, realiza o épico “Giant – O Gigante”, baseado no romance de Edna Faber sobre a história de um criador de gado no Texas e dos seus associados ao longo de várias décadas do século XX. No elenco estavam os nomes de Rock Hudson, Elizabeth Taylor e James Dean. Nomeado para vários Oscares da Academia, “O Gigante” levaria apenas o prémio para Melhor Realizador. O filme ficou sempre marcado por ser a última aparição de James Dean no grande écran. A morte prematura do actor, aos 25 anos de idade vítima um acidente de viação, não lhe permitiu assistir á estreia nem desfrutar do sucesso do filme. Tornou-se num dos grandes clássicos da sétima arte. Em 2007, o filme “Haverá Sangue”, de Paul Thomas Anderson homenageia, de certa maneira, a mesma temática do filme de Stevens. 

            


Em 2001, o jornalista de investigação Eric Schlosser publica o livro “Fast Food Nation” onde denuncia as prácticas pouco higiénicas levadas a cabo pela indústria da chamada “Fast Food” e diz que o seu livro se inspirou directamente no trabalho que o escritor, político e  activista  socialista, Upton Sinclair (1878-1968) publicou em 1906, intitulado “The Jungle” onde denunciava as condições de trabalho e sanitárias da indústria de preparação e distribuição de carne. Schlosser, que pouco conhecia da obra de Sinclair, decidiu aprofundar o seu conhecimento e leu “Oil!”, o romance que o político publicou em 1927. Achou-o profundamente interessante e pensou que daria um bom filme. Procurou os herdeiros de Sinclair e comprou-lhes os direitos de adaptação. Faltava encontrar algum realizador que gostasse da obra tanto quanto ele e a quisesse adaptar para cinema. Depois de alguma procura, nem sempre com resultados positivos, entrou em cena Paul Thomas Anderson. O realizador que andava às voltas com a escrita de um argumento que envolvia duas famílias rivais, mas que não estava a resultar. Um dia, em Londres, encontrou uma cópia de “Oil!” que o atraiu por causa da capa onde se via um campo de petróleo na Califórnia e começou a lê-lo e, à medida que avançava na leitura, mais entusiasmado ia ficando. Soube então que Eric Schlosser tinha os direitos de adaptação e entrou em contacto com ele, que lhe deu luz verde para um primeiro argumento. Anderson escreveu o argumento do filme baseado apenas nas primeiras 200 páginas do livro (que tem 528 páginas) e mudou-lhe o título para “There Will Be Blood” por achar que soaria melhor ao ouvido do que “Oil!”. E teve razão nesta escolha! 

Schlosser, creditado no filme como co-Produtor Executivo, aprovou o argumento e começou a procura do elenco. Paul Thomas Anderson desde sempre mostrou interesse em trabalhar com Daniel Day-Lewis e escreveu o argumento com o actor em mente. Day-Lewis, ao ler o argumento que lhe foi enviado, mostrou interesse em trabalhar com o realizador, já que gostaria do seu filme “Punch-Drunk Love – Embriagado de Amor” (2002), uma comédia com Adam Sandler, Emily Mortimer e Phillip Seymour Hoffman que não tinha sido um grande sucesso de bilheteira. Para Lewis, interpretar Daniel Plainview, personagem complexa e principal do filme, foi mais um desafio que o actor quis superar. 

            


A acção passa-se na viragem do século XIX para o século XX, entre o Novo México e a Califórnia, numa altura em que o negócio do petróleo ainda se encontrava numa fase embrionária com os primeiros prospectores a começar a desbravar caminho. Daniel Plainview é um desses prospectores que durante uma pesquisa encontra prata num terreno e acaba por adquirir licença para o explorar. Com um faro especial para descobrir e adquirir terrenos, quase a custo zero, onde o ouro negro existe, Plainview cria a sua própria empresa de perfuração e dá início ao seu império petrolífero. A sua ambição é desmedida e a ganância mais que muita, o que lhe trará inevitáveis consequências.

Raramente, o princípio dos filmes contém imagens que são quase mais poderosas que o próprio filme. "Haverá Sangue" tem essa vantagem. Os primeiros dez minutos de filme, em que se vê uma personagem de nome (viremos a sabê-lo mais tarde) Daniel Plainview a trabalhar num buraco pouco mais largo que ele, onde sofre um acidente que lhe parte uma perna e tudo aquilo que se segue, são extremamente poderosos e, de certa maneira, marcam todo o filme daí para a frente. 

        


O confronto entre Daniel Plainview e Eli Sunday nasce cedo no filme mas vai durar uma vida inteira. Eli é um padre evangelista cujo único objectivo é tirar dinheiro a Plainview para puder construir a sua igreja: Daniel, a princípio, alinha com ele e ajuda-o prometendo-lhe até a bênção do primeiro poço de petróleo construído nas terras circundantes da propriedade dos Sunday. Mas quando a altura chega, Plainview proíbe-o e ignora completamente as pretensões do outro humilhando-o perante toda a comunidade. O que se segue são imagens verdadeiramente poderosas e magnificamente criadas pelo director de fotografia Robert Elswit (vencedor do Oscar na respectiva categoria) e pelo director de produção Jack Fisk em que vemos os primeiros poços substituídos por vastos campos de petróleo supervisionados por Plainview sentado no alpendre da sua casa, a beber whiskey atrás de whiskey enquanto diversos acidentes acontecem onde morrem homens, o seu filho adoptivo fica surdo em consequência da explosão dum poço levando a uma maior distanciamento entre ambos já que Daniel apenas precisa dele como um adereço e não como um agregador de simpatia.

           



 As temáticas que “Haverá Sangue” explora: ambição, ganância, engano e ilusão são a razão que opõe Daniel Plainview  e Eli Sunday numa luta de proporções épicas: enquanto Daniel quer a riqueza material, prata e petróleo, engana os proprietários das terras onde sabe haver petróleo, que lhas vendem por preços muito abaixo do seu valor real; Eli pretende ser um líder, um agregador de vontades, um profeta cheio de um puritanismo irredutível que ousa enfrentar o diabo em encenações perfeitamente estudadas; Daniel constrói a sua empresa de perfuração, Eli cria a Congregação da Terceira Revelação. Ambos são enganadores, criadores de ilusões, um engana com a promessa de dinheiro, o outro engana com a salvação; Daniel ilude-se ao pensar que algum dia poderá ser um verdadeiro pai para o seu filho adoptivo, H.W.Plainview; quanto a Eli, assume uma auto-grandeza que não existe e, vítima da sua própria ganância, acaba por negar a sua pregação. O encontro final entre os dois, numa cena extraordinária, quer a nível interpretativo quer a nível técnico, tem um tom quase biblíco: Daniel é o milionário que sempre quis ser, só e alcoólico (trazendo-nos á memória Charles Foster Kane de Orson Welles em “Citizen Kane – O Mundo a Seus Pés”), Eli é um evangelista da rádio, educador de almas, mas, também ele, cheio de vícios e dívidas. De humilhação em humilhação, alma corrompida contra alma corrompida, o desfecho acaba por ser o esperado…ou talvez não?

        

O Realizador P.T.Anderson com Day-Lewis

Realizado por Paul Thomas Anderson, que já nos havia dado o "softcore" "Boogie Nights Jogos de Prazer"(1997), que revitalizou a carreira de Burt Reynolds, ou o intrigante "Magnolia" (2001), com Tom Cruise, Julianne Moore, Jason Robards e Philip Seymour Hoffman, "Haverá Sangue" tem um toque de filme épico mas o realizador não chega a entrar no género. Produção cuidada, com uma especial atenção ao pormenor principalmente ao detalhe da época. Aliás, Paul Thomas Anderson, disse que o seu filme era como um familiar, embora distante de "O Gigante"(George Stevens, 1956) que, de uma forma muito mais épica, tratou o mesmo tema.
           


 Indiscutivelmente o filme pertence todo a Daniel Day-Lewis que, em apenas duas cenas extraordinárias, merecidamente venceu o Oscar de Melhor Actor do Ano, e ambas  na segunda parte do filme: a já referida cena final e, mais concretamente, na sequência da conversão e arrependimento de Daniel Plainview em que este, humilhado pelo reverendo Eli (numa espécie de vingança pela humilhação sofrida inicialmente), é coagido a confessar ter abandonado o seu filho, que o actor ganha o filme por completo e, por acréscimo, a estatueta; simplesmente brilhante e inesquecível. Também Paul Dano no duplo papel de Paul Sunday e do reverendo Eli Sunday, o verdadeiro opositor de Plainview e responsável por alguns dos fracassos de Plainview, durante todo o filme e responsável pela sua conversão, contribui para que o filme seja uma experiência quase brutal. 

“Haverá Sangue” é um filme sobre muitas coisas já referidas atrás, mas é principalmente sobre um país em transição, já que a acção começa em finais do século XIX e atravessa parte do século XX, tal como “O Gigante” de Stevens o fizera em 1956. O filme de Paul Thomas Anderson oscila permanentemente entre dois estados: areia e poeira, nada sobre nada, cujos limites são onde nada há e onde tudo pode vir a ser. A forma desse vir a ser é viscosa, líquida e negra, é um solo de óleo e um mal da alma. É também um filme sobre a procura permanente de riqueza, o de querer mais e mais sem olhar a meios para a obter. 

No final parece não haver lugar para mais nada que seja digno de referência, a não ser o facto de que Daniel, agora um milionário famoso, passou duma obsessão pelo petróleo à possessão do mesmo a um estado de loucura total em que deserda o seu filho ao saber que este quer dissolver a sua parceria com o pai, além de gozar com a sua deficiência e revelar o segredo da sua existência, e que, tal como Kane de “O Mundo a Seus Pés” na sua Xanadu, vagueia pela sua mansão como um fantasma, só e abandonado por todos.

            O filme dividiu a crítica e conseguiu um sucesso junto do público e oito nomeações para os Oscares, incluindo nas categorias principais de Melhor Filme, Melhor Realizador e Melhor Actor, além de inúmeros outros prémios nacionais e internacionais. Desde que estreou, em 2007, tem vindo a ser  considerado um dos grandes clássicos do cinema do século XXI.

 

 

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