terça-feira, 18 de janeiro de 2022

                         “Citizen Kane” – O Melhor Filme de Sempre? 
    

 Numa votação levada a cabo em dezembro de 2000, pela revista de cinema “Empire”, na qual se pedia que o publico escolhesse aquele que considerava o melhor filme do século XX, o filme escolhido foi “Citizen Kane – O Mundo a seus Pés” (1941). De resto, o filme consta em todas as listas de escolhas que se fizeram, década após década, desde que o filme estreou. Mas, afinal, o que é que fez este filme ganhar o estatuto e a importância que adquiriu e que, já em pleno século XXI, continua a ter? Tudo começou depois da polémica, e hoje famosa, adaptação radiofónica do livro “The War of the Worlds – A Guerra dos Mundos”, escrito por H.G.Wells em 1895, que Orson Welles fez a partir do “Mercury Theatre”, na Broadway no seu programa “Mercury Theatre on the Air”. A transmissão da adaptação foi tão realista que practicamente todos os americanos acreditaram que estava realmente a acontecer uma invasão alienígena do nosso planeta. 
    Nessa altura, enquanto Hollywood procurava talentos na Broadway, a “RKO Radio Pictures” viu em Welles um possível novo e grande talento e contratou-o como realizador para fazer dois filmes com completa liberdade de escolha de argumento, de elenco, técnicos e ainda com direito ao “Final Cut” dos filmes (algo que só se tornaria realidade muitas décadas depois). Depois de algumas tentativas falhadas de realização, juntou-se ao argumentista Herman J. Mankiewicz (irmão do realizador Joseph L. Mankiewicz), que era escritor de peças na rádio onde Orson Welles trabalhava e ambos escreveram o argumento do filme “Citizen Kane” e mal sabiam que estavam a escrever uma nova página na história da Sétima Arte. 
     

Na sua mansão principesca de Xanadu, o magnata do jornalismo Charles Foster Kane, ás portas da morte, ao mesmo tempo que segura um globo de neve, pronuncia a palavra, “Rosebud” e morre. O sensacionalismo que a sua morte causa repercute-se pelo mundo inteiro e Jerry Thompson, um jornalista, é encarregado de investigar a vida e também a morte de Kane e tentar descobrir qual o significado da sua última palavra. 
O argumento do filme é inspirado na vida de William Randolph Hearst, um verdadeiro magnata da imprensa escrita americana com estreitas ligações ao poder político e de quem Mankiewicz era amigo até ser expulso pelo próprio do seu círculo de amigos. As semelhanças entre Hearst e Kane eram tantas (graças ao ódio de estimação que Mankiewicz passou a ter com o magnata) que o filme foi proibido de ser sequer mencionado nos jornais de Hearst. 
    


     

“Citizen Kane”é um dos (primeiros) raros filmes em que o elenco é quase todo composto por actores e actrizs desconhecidos no mundo do cinema, alguns deles vieram da companhia de teatro a que Welles pertencia e, além dele gostar de os usar neste filme e em outras obras futuras, muitos tiveram nesta obra a sua rampa de lançamento para carreiras cinematográficas. Para Orson Welles, William Alland, Ray Collins, Joseph Cotten, Agnes Moorhead e muitos outros, este filme representou o primeiro contacto com Hollywood e o seu mundo, ou, por outras palavras, foi a sua estreia na meca do cinema. No início da rodagem, Miriam Geiger, consultora na produção, preparou uma compilação manual de técnicas de filmagem que deu a Welles que a estudou cuidadosamente juntamente com visionamentos de alguns filmes clássicos europeus de Fritz Lang, René Clair ou Jean Renoir, mas também de filmes americanos de Frank Capra, King Vidor ou John Ford, que, revelou o actor- realizador mais tarde, foi a sua maior influência  
     

Com grande vontade de inovar e não desapontar, Welles rodeou-se de alguns nomes grandes do cinema em termos de técnica, como foi o caso de Gregg Tolland, director de fotografia de algumas grandes produções antes e depois de “Citizen Kane”. Gregg Tolland era um experimentalista, já com créditos firmados no cinema e na sua constante procura de inovação assistiu a diversas produções da “Mercury Stage Production” e percebeu que Welles era a sua melhor opção para mostrar técnicas de câmera que outras produções de Hollywood não lhe permitiam fazer. Tolland queria trabalhar com alguém que nunca tivesse feito cinema e, literalmente, ofereceu-se para trabalhar com Welles e a RKO contratou-o em junho de 1940. Orson Welles, Com toda a gente a bordo, obteve luz verde para começar oficialmente a rodagem a 1 de julho de 1940, embora os primeiros “takes” já estivessem filmados desde junho. A rodagem seria interrompida em outubro do mesmo ano para permitir que o realizador, o director de fotografia e o Produtor Artístico, Jerry Ferguson, procurassem outros localizações para filmar, mas em novembro a produção seria retomada para re-filmar alguns “takes”. A última cena a ser filmada (e a primeira a aparecer no filme) é a morte de Kane que aconteceu a 30 de novembro. 
     

A montagem do filme ficou a cabo de Robert Wise e do seu assistente, Mark Robson, ambos futuros realizadores de sucesso. O processo de montagem começou ainda decorriam as rodagens e, ao contrário do que hoje acontece, o realizador não estava sempre presente. Welles dera instruções detalhadas a Wise pelo que não lhe era necessário estar sempre presente pois o filme e a sua montagem estavam extremamente bem planeados. Tanto Robert Wise como Mark Robson percebiam que estavam a fazer algo diferente e inovador só não sabiam o quanto o seu trabalho iria mudar a história do cinema. 
     “Citizen Kane” começa com diversos planos de “Xanadu”, a mansão onde Charles Kane se encontra a morrer e pronuncia a enigmática palavra “Rosebud”, para depois nos mostrar em formato “cinejornal”, uma espécie de noticiário cinematográfico muito em voga nos cinemas nas décadas de 30, 40 do século passado, a vida do magnata dos jornais desde o seu começo e até ao seu falecimento e só depois destes primeiros minutos introdutórios (e já por si só enigmáticos) e que entramos verdadeiramente no filme, o que, também aqui era algo nunca visto até então. 
    
     

O filme rejeita a tradicional narrativa linear e cronológica (novamente a romper com aquilo a que se estava habituado a ver), e conta a história de Kane em “flashbacks” através de diferentes pontos de vista das muitas pessoas, interessantes e desinteressantes, que conviveram com ele, ou seja o equivalente cinematográfico àquilo a que se poderia chamar, em literatura, o narrador de pouca confiança. Welles, noutra ruptura com o filme tradicional, corta com a ideia de um só narrador e utiliza múltiplos narradores para contar a vida do magnata, em que cada um conta a vida dele sobrepondo-se à anterior e mostra-nos um Kane como um enigma, um homem complicado que deixa, no espectador, mais dúvidas que respostas acerca da sua personalidade. Orson Welles, de acordo com Gregg Toland, utilizou na rodagem uma extensa profundidade de campo, ou seja tudo o que está em primeiro plano, segundo plano, e tudo no meio está em foco, de modo que tanto a composição das cenas como os movimentos das mesmas determinavam para onde o olhar se dirigia primeiro. Outra técnica inovadora usada no filme foi as cenas de baixo para cima, permitindo que os tectos das habitações fossem mostrados em fundo em várias cenas e fazendo com que até as coisas mais aborrecidas fossem interessantes. Welles quis que todos os cenários fossem construídos de raiz ( para esconder os microfones) e com tecto . Ele queria que a câmera mostrasse aquilo que os olhos vêem. Na cena em que Kane se encontra com Jedediah Leland, o seu maior amigo, depois daquele ter perdido as eleições para Governador, Welles mandou cavar partir o cimento do chão para utilizar nesse buraco a câmera e assim obter um perfeitíssimo ângulo baixo. 
    

 Todo o filme é construído a partir de imagens visualmente magnificas, mas que na altura poucos deram por isso: as torres de “Xanadu”, Kane a discursar perante os seus eleitores; a porta do prédio da sua amante a dissolver-se numa fotografia de um jornal rival; o movimento da cãmera através duma claraboia em direcção a Susan no seu clube nocturno; ou aquele grande momento em que a câmera se eleva sobre o rosto de Susan na sua estreia no palco para um ajudante de palco e o plano que se segue de Kane, com o rosto escondido pela sombra a aplaudir desafiadoramente no salão silencioso; são tantos os momentos de magia cinematográfica neste filme que se torna difícil eleger um só que o possa definir. 
 A palavra à volta da qual gira tudo o filme aumentando o mistério à volta de Kane, o tal “Rosebud” nunca nos é explicado a que se refere mas ficam algumas pistas no ar, nomeadamente o que Jerry Thompson diz acerca dela “Talvez Rosebud seja alguma coisa que ele não pode ter ou algo que perdeu”, ou talvez a explicação esteja na cena final do filme, em que “Rosebud” significa a segurança, a esperança e a inocência da infância. na qual um homem passa toda a sua via a tentar alcançar. Seja como for, Charles Foster Kane foi um homem que teve tudo, um império nas suas mãos, o poder de fazer e desfazer, de criar, um homem que teve “O Mundo a Seus Pés” ( o que justifica plenamente o título em português) e que tudo perdeu. 
     Estreado com pompa e circunstância no RKO Palace Theatre a 1 de maio de 1941, “Citizen Kane” obteve um êxito mediano e assim continuou nas mais de 500 salas onde se estreou nos dias e semanas seguintes. A crítica olhou para o filme e considerou-o uma obra inovadora e de qualidade técnica superior a muitas produções da altura. O público, por seu lado, preferiu olhar para outras produções de mais fácil entendimento e ignorar quase por completo a obra de Welles. As comparações que faz com a vida de William Randolph Hearst eram tantas no seu entender que ele baniu o filme dos seus meios de comunicação e proibiu qualquer referência ao mesmo. Talvez estas fossem algumas das razões que impediram o filme de estrear em muitas cidades grandes, o medo das repercussões que teriam do verdadeiro magnata da imprensa. 
     

O filme só chegaria á Europa em 1946, com um sucesso igual ao dos Estados Unidos e, apesar das críticas negativas, vindas duma certa área intelectual de esquerda, principalmente a francesa, que acusava o filme de fazer uma apologia ao capitalismo e ao imperialismo americanos, o que, tendo em conta que a Europa e o mundo acabavam de sair duma guerra mundial, teve algum impacto na recepção ao filme. Foi só a partir de meados da década de 50 e 60, por via da “nouvelle vague” francesa é que o filme esteve no centro de uma nova reavaliação, principalmente por Jean-Luc Godard e François Truffaut e desta vez a impressão seria completamente diferente. Nomeado para nove Oscares da Academia, incluindo para Melhor Filme e Melhor Realizador, “Citizen Kane” seria apenas premiado com o Oscar de Melhor Argumento co-partilhado entre Orson Welles e Herman J. Mankiewicz, o que diga-se de passagem, é manifestamente pouco para um filme que ainda hoje é uma lição de como fazer cinema. Nas décadas seguintes, a importância do filme foi crescendo a tal ponto que foi, e continua a ser, considerado o melhor filme de todos os tempos. A influência do filme continua a ser nítida em todo o panorama cinematográfico e não existe nenhum realizador, americano ou não, que não tenha visto “Citizen Kane” pelo menos uma ou duas vezes na sua vida e não se sinta tocado pela história, pela técnica, mas principalmente pelos ensinamentos inovadores que a obra mostra e o considere uma referência obrigatória nos anais dos cinema. .

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