sexta-feira, 25 de junho de 2021

                                       O Caçador – O Vietname em Três Actos

            
    
Se exceptuarmos os filmes sobre a IIª Guerra Mundial (1939-45), a guerra do Vietname (1955-1975) é o confronto armado que mais vezes foi levado ao grande écran. Nas últimas décadas do século XX, deverão ter sido poucos os realizadores que não abordaram o Vietname na sua filmografia. Alguns fizeram-no bem, outros nem tão bem assim, mas houve aqueles que, na sua obra, abordaram o conflicto de tal maneira que esta se transformou na “Quinta essência sobre o Vietname” (ver meus artigos sobre “Apocalypse Now”, “Platoon” e “Full Metal Jacket”).

Mike, Steven e Nick são três operários metalúrgicos numa fundição na Pensilvânia que vão embarcar para combater no Vietname. Porém, antes de o fazerem, vão casar Steven e participar numa última caçada juntamente com outros amigos. Na guerra a experiência revela-se traumática para os três, o que traz consequências quando apenas Mike e Steven regressam a casa enquanto o paradeiro de Nick é desconhecido.

            A história do filme começou a ser contada por volta de 1968, quando Michael Deeley, produtor americano, comprou um primeiro esboço de uma história escrita por Louis Garfinkle e Quinn K. Redeker, intitulada “The Man Who Came to Play”, acerca de pessoas que iam a Las Vegas para jogar a Roleta Russa. Apesar de não estar completa, Deeley percebeu que tinha em mãos uma história inteligente e a sua ideia foi completá-la de modo a torna-la num possível filme. Mas um filme sobre o quê? Deeley guardou o esboço durante algum tempo enquanto estudava possibilidades de fazer alguma coisa com aquela história. 

Nos anos 70 a temática do Vietname ainda era um tabu entre os grandes estúdios de Hollywood, Michael Deeley viu ali uma possibilidade de poder usar a história, mas nenhum estúdio queria arriscar fazer um filme sobre um tema ainda tão delicado, com muitas feridas por sarar e numa América a recuperar duma guerra que ainda não percebera bem o porquê do seu envolvimento nela.    

    

Michael Cimino

Depois de ver fecharem-se algumas portas, Deeley encontrou Michael Cimino, que além de argumentista nalguns filmes menores, já tinha alguma experiência de televisão e já realizara “Thunderbolt and Lightfoot – A Última Golpada”, em 1974, com Clint Eastwood (que na altura já começava a dar nas vistas em Hollywood e produzira o filme) e Jeff Bridges como protagonistas. Sentiu-o confiante e convidou-o para trabalhar na história e fazer dela um argumento cinematográfico. Depois duma reunião com os autores da história, Cimino trabalhou durante seis semanas na escrita do argumento em colaboração com Deric Washburn com quem já havia trabalhado juntamente com Steven Bochco no argumento de “Silent Running – O Cosmonauta Perdido” (Douglas Trumbull, 1972). Os dois retiraram elementos da personalidade de Merle, o protagonista da história original, psicologicamente afectado durante a sua comissão no Vietname, e colocaram-nos nos três amigos que são o centro da acção: Michael, Steve e Nick e moldam as personagens de acordo com os elementos retirados de Merle.

           


 Escrito o argumento que acabou por ser assinado por Deric Washburn e ainda foram dados créditos da história a Cimino, Washburn, Garfinkle e Redeker (foram conjuntamente nomeados para o Oscar) e escolhido o elenco que incluía Robert  De Niro, John Savage, John Cazale ( no seu último papel antes de falecer em 1978, não chegou a ver a estreia do filme), Meryl Steep e Chistopher Walken, entre outros, a rodagem começou a 20 de junho de 1977 e terminaria em dezembro do mesmo ano.

“O Caçador” é um filme feito em três actos, três movimentos como se se tratasse de uma sinfonia ou uma ópera, avança progressivamente desde um casamento até a um funeral e, pelo meio, temos um dos filmes mais emocionalmente devastadores de que há memória.    


Começa com homens a trabalhar algures numa fundição de metal, é o final de turno daquele que será o seu último dia de trabalho em muito tempo. Dirigem-se a um bar para beber umas cervejas. O filme, propositadamente, demora algum tempo com estas cenas iniciais antes de mergulhar na grande cena do casamento de Steve e Angela, que, segundo o realizador, demoraria cerca de 21 minutes, mas acabou por durar 51 minutos. Na realidade, o que Cimino queria era fazer um longo prólogo antes de deleitar os espectadores com algumas belas imagens de natureza, daquelas de cortar a respiração, numa caçada para celebrar o último dia de liberdade dos três amigos antes de embarcarem para o Vietname. A belíssima cena da caçada termina com um último momento no bar onde John, ao piano, toca um Nocturno de Chopin que, para os cinco amigos em silêncio, se torna emocionalmente mais intenso e doloroso que uma qualquer despedida.
      

Subitamente, sem qualquer aviso que nos prepare para isso, apenas uma explosão, estamos no Vietname e no segundo acto ou segundo movimento deste filme onde se jogam as experiências horrorosas e traumáticas a que os três amigos são sujeitos. Essas experiências surgem na forma de um jogo que eles, feitos prisioneiros, são obrigados a jogar: um jogo de Roleta Russa jogado sob o olhar atento e meio embrutecido dos seus captores que apostam em quem vai ou não morrer naquele jogo. É uma das mais terríveis e horrorosas sequências alguma vez criada em ficção. A Roleta Russa adquire um simbolismo próprio dentro do filme: a sua deliberada violência e o facto de mexer com a sanidade mental de cada um dos intervenientes, aplica-se brilhantemente ao filme já que contextualiza ideologicamente neste filme, numa metáfora perfeita, a completa inutilidade da guerra. 

        
    
Robert De Niro e Meryl Streep

A personagem de Michael (que De Niro interpreta brilhantemente), é aquele que encontra a sua própria força para continuar e para ajudar Steve e Nick (John Savage muito bem e Christopher Walken no papel da sua vida que, inclusive, lhe deu o Oscar de Melhor Actor Secundário) a continuarem. Ele sobrevive à prisão e, apesar da experiência traumática, ajuda os outros a escaparem. Quando finalmente regressa a casa, vai rodeado de um silêncio tão traumatizante que ninguém, nem mesmo Linda (Meryl Streep num dos seus primeiros papéis em cinema), a namorada de Nick mas que ele, secretamente, também deseja, consegue penetrar. Michael é o herói, que a cidade recebe calorosa e timidamente, mas que, intimamente, não se considera como tal e isso vê-se na cena em que ele chega de táxi, pede ao motorista para continuar sem parar na sua casa onde os amigos o aguardam e depois, escondido, espera que eles se retirem e só então vai para casa. Michael, sem vontade, tenta retomar a sua vida sem saber dos seus dois companheiros que pensa ter perdido no Vietname, é incapaz de se declarar a Linda (apesar desta o tentar vagamente) porque sabe que deixou o seu namorado para trás. Ele vive atormentado pela promessa que fez a Nick, na noite do casamento e sob a luz do luar que banha um campo de basketball vazio, de não o deixar no Vietname e que não conseguiu cumprir. Finalmente ganha coragem e vai visitar Angela, a mulher de Steven que se encontra numa grande depressão, à espera que ele venha para casa. Aquilo que ela lhe transmite, fá-lo ganhar uma espécie de nova vida.

            

O terceiro acto ou movimento, começa num tom muito tranquilo como que a preparar o espectador para o que aí vem. A caçada, com que se inicia, deveria ser um momento de alegria entre aqueles que estão presentes (Michael, Stanley, Axel e John, apesar de se sentir a falta de Nick e Steven), mas tal não acontece porque Michael não consegue matar um veado ( o ritual que ele tinha de matar o veado só com um tiro, agora é-lhe completamente estranho), Stanley, com a sua pistola que exibe e ameaça todos sem se aperceber que ela está carregada, estraga a caçada e onde todos percebem o estado mental em que Michael se encontra. Pouco tempo depois, ele tem uma nova missão: depois de ir buscar Steven, psicologicamente afectado pela dupla amputação que sofreu das pernas, ao hospital de Veteranos de Guerra e saber que afinal Nick está vivo, regressa a Saigão para cumprir a promessa que lhe fez.

Na última parte do filme, Nick e Michael estão frente-a-frente, num local onde um grupo de Vietnamitas, Franceses e Americanos, que representam o pior do ser humano, apostam nos jogadores em jogos sucessivos de Roleta Russa. A metáfora, repetida novamente, ganha aqui uma expressão monumental quando nos apercebemos que uma guerra trouxe a morte a um jogo de sorte e, naquele local, todos são vítimas, completamente esvaziados de qualquer tipo de humanidade. 


        A cena final, primeiro com conversa banal que rapidamente dá lugar ao silêncio, depois alguém começa a cantar “God Bless America” e todos se juntam espontaneamente, no bar do John, tem muito que se lhe diga pois a América nunca mais foi o mesmo país que era antes de se envolver no Vietname e faz com que reflectamos sobre o preço que se paga por guerras, que a maior parte das vezes, ninguém quer. 

  


O filme estreou em dezembro de 1979, em Nova York e Los Angeles, manteve-se em exibição durante uma semana e depois foi retirado do circuito comercial. Esta estratégia foi usada para que o filme pudesse qualificar-se para os Oscares e, ao mesmo tempo, aguçar o apetite do público e crítica e aparentemente conseguiu os seus intentos: foi nomeado para nove Oscares da Academia, e, naquela semana de exibição, rendeu qualquer coisa como 19.000.000 de dólares (no total só nos Estados Unidos, o filme obteria cerca de 48.979.000 de dólares).  O filme venceu cinco Oscares da Academia, que incluiram o de Melhor Filme, Melhor Realizador e Melhor Actor Secundário, além de outros prémios em diversos festivais.

Apesar de ter estreado num ano particularmente cheio de filmes sobre o Vietname, dos quais se destacam “Coming Home – O Regresso dos Heróis” de Hal Ashby ou “The Boys in Company C – Os Rapazes da Companhia C” de Sidney J. Furie, “O Caçador” foi o primeiro a alcançar uma grande variedade de público, boas críticas e a ganhar o Oscar da Academia para Melhor filme do Ano que foi definitivo para o seu sucesso. Em 1996, o filme foi seleccionado para preservação no Registo Nacional de Filmes pela Biblioteca Nacional do Congresso por ser cultural, histórico e esteticamente significativo.

Uma das obras definitivas sobre a guerra do Vietname.


Nota: As imagens  que ilustram o texto foram retiradas da Internet.

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