sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

         XEQUE AO REI – O LADO OBSCURO DE UM COLÉGIO


          

         
           Em 1951, o escritor britânico J.D.Salinger publicou um romance intitulado “The Catcher in the Rye” que em português se chamou “O Apanhador de Centeio” ou “Uma Agulha no Palheiro”. O livro contava a história de um rapaz que, por alturas do natal, resolve fugir do colégio interno onde estuda devido aos maus resultados que obteve nesse semestre para evitar o confronto com os seus pais. O livro, originalmente dirigido a um público mais adulto, acabou por se tornar muito popular entre os adolescentes das décadas seguintes devido ás suas temáticas de alienação, angústia e alguma critica á sociedade em geral. O livro terá, certamente servido de inspiração para Joanne Harris, a escritora britânica de sucesso, escrever o seu livro “Gentlemen & Players” que em português se chamou “Xeque ao Rei”.

              


 St.Oswald é um colégio tradicional, masculino, situado no norte da Inglaterra e está-se a iniciar um novo ano lectivo. Roy Straitley, professor de Latim, é o decano dos professores do colégio e, face, aos avanços tecnológicos que começam a surgir no colégio, começa a pensar seriamente em reformar-se. Mas por entre as tradições colegiais e os ventos da mudança, algo maligno e negro move-se entre as paredes de St.Oswald, começam a acontecer coisas estranhas e inexplicáveis que vão afectar o quotidiano do colégio e levar a que Straitley adie a sua reforma.

        

         A acção decorre entre o presente e o passado e é contada a duas vozes, como se dum jogo de xadrez se tratasse e no tabuleiro apenas estão duas peças que são as únicas que importam: Roy Straitley é representado por um Rei branco, enquanto que o psicopata é um Peão negro. No início de cada capítulo surge a peça respectiva e é a personagem representada que narra os acontecimentos que, por vezes, se entrecruzam dentro de St.Oswald, ou seja, por vezes,  ambos os narradores estão presentes (quer seja nos capítulos de um ou do outro) e interagem, mas Joanne Harris, brilhantemente, nunca nos dá nenhuma indicação de quem é, na realidade, o psicopata e consegue-o durante mais de três quartos do livro, onde nos vai dando a conhecer (via o psicopata) o seu ódio e as suas motivações contra St.Oswald, os professores, os alunos e, particularmente, a Roy Straitley ao qual, a dado momento, num dos seus monólogos (para o leitor), revela, através do seu pseudónimo, “Mole”, que usa para escrever no jornal local da vila e onde surgem alegações danosas para o colégio, que o seu confronto está próximo, “O dia em que eu derrubar St.Oswald, quero que Roy Straitley lá esteja!”…e o resto é uma completa surpresa porque ninguém, mas mesmo ninguém (não só os leitores como também todas as personagens que gravitam em torno dos narradores) está á espera do desfecho final.

     


O título original “Gentlemen & Players” nunca é explicado no livro, mas sendo a acção passada num colégio inglês onde se praticam desportos, entre os quais o Cricket, practicado em toda a Inglaterra. Existiu, durante muitos anos (entre 1806 e 1962), um jogo que se disputava anualmente e que era considerado de primeira classe, entre Cavalheiros (Gentlemen), uma élite de jogadores de Cricket amadores (universitários e jovens independentes), e uma equipa de Jogadores profissionais (Players). Joanne Harris, com este título, quis fazer uma analogia entre o desporto practicado por aquelas equipas e o tipo de aluno que frequentava St.Oswald. “Gentlemen & Players” é uma referência ás diferenças de classe e ao snobismo que sempre existiu na sociedade.

Joanne Harris
            
Joanne Harris, antes de se tornar escritora, foi professora e durante alguns anos deu aulas de Línguas Modernas em escolas secundárias e em universidades, pelo que não é de estranhar a facilidade com que escreveu esta história de vingança e redenção, juntando-lhe  momentos de comédia negra misturada com  ambientes intensos de suspense de cortar a respiração que vai manter o leitor agarrado ao livro até á última página. Dona de uma prosa muito própria e actual, Joanne Harris transporta-nos para um universo do passado (as instituições de ensino internas) com uma actualidade real (a diferença de classes entre a população escolar, entre os pobres e os ricos) e o discernimento nas estruturas do poder que dominam dentro de uma instituição de aprendizagem na qual um professor não sabe se está a ser alvo de um ataque ao seu bem estar (Roy Straitley e o seu método de trabalho há muito ultrapassado) por malícia, por pura estupidez ou a junção das duas. Neste universo, através de uma narrativa complicada, com duas perspectivas e contada em dois tempos, emergem duas personagens, cada uma com as suas motivações para fazer o seu papel: de um lado, Roy Straitley, professor de Latim, que devotou a sua vida a St.Oswald que agora, no final da sua carreira profissional, enfrenta o maior desafio da sua vida, ao perceber que é o último sobrevivente de uma certa raça de professores clássicos; do outro, alguém que quer vingar-se de St.Oswald e da sua reputação como estabelecimento de ensino. 

     


De tempos em tempos “flashbacks” esmiúçam a infância, a adolescência e a juventude do segundo narrador dando assim uma imagem completa de uma mente perturbada e explicações sobre o porquê de alguém querer destruir a reputação de um colégio de renome e fazer mal a elementos da equipa. Harris joga com todos estes trunfos e consegue, com uma competência admirável, trabalhar todas as voltas e reviravoltas da história e ainda engendrar um final surpreendente e inesperado que nos deixa completamente boquiabertos. Contudo, este é um livro muito forte no drama e no mistério (quem é o autor da vingança?) e também muito plausível na apresentação dos motivos (o porquê?) e no qual existem ocasiões onde manter uma descrença total se torna quase impossível.

Este livro é a obra-prima de Joanne Harris, apesar dela ser mais conhecida pelo seu livro “Chocolate” (1999), que foi um sucesso de vendas. Mas foi a sua adaptação para o cinema em 2000 num filme com Johnny Depp e Juliette Binoche que, não só ajudou ao sucesso, mas também contribuiu para tornar a autora mais conhecida. “Xeque ao Rei”, quando foi publicado em 2005, acabou também por ser também um sucesso de vendas. 

Em 2016 Joanne Harris voltou ao universo de St.Oswald para escrever “Uma Questão de Classe”, uma sequela mais negra e sinistra de “Xeque ao Rei”.

            

    

sexta-feira, 31 de julho de 2020

SPARTACUS


     
Quando estreou, em 1960, “Spartacus” foi olhado de soslaio pela crítica, não pelo público que o tornou num grande sucesso de bilheteira para a “Universal Pictures” que o distribuiu e que seria o seu maior êxito até 1970 quando “Airport – Aeroporto” de George Seaton estreou e inaugurou o género “Filme-Catástrofe”. A crítica, por seu lado, questionava-se sobre o porquê de uma nova superprodução ambientada no Império Romano depois de “Ben-Hur” (William Wyler, 1959) ter sido um grande sucesso e ter-se tornado no filme mais premiado da História do Cinema ao arrebatar 11 Oscares da Academia, incluindo o de Melhor Filme e de Melhor Realizador, em 12 nomeações? Mas, como se veio a provar, “Spartacus” era muito mais que isso.
     Em 73 a.C., um escravo trácio, de nome Spartacus, que trabalha numa exploração mineira, é condenado a morrer á fome por homícidio de um Centurião romano. Por sorte, um homem de negócios e lanista (dono de uma escola de gladiadores), chamado Lentulus Batiatus, enquanto procurava candidatos a gladiadores, repara no seu potencial e decide comprá-lo também. Já na escola de gladiadores, Spartacus apaixona-se por Varinia, que trabalha nas cozinhas e é igualmente escrava. Depois de uma demonstração das capacidades dos gladiadores de Batiatus pedida por um Senador Romano, Marcus Crassus, este conhece Varinia e fica impressionado com ela, decide comprá-la ao lanista e pede-lhe para a levar para Roma quando lá for. Ao vê-la partir no dia seguinte, Spartacus, farto de sofrer humilhações ás mãos dos romanos, revolta-se e, juntamente com outros, fogem para as montanhas decididos a serem livres.
   

A ideia de fazer “Spartacus” nasceu depois de Kirk Douglas ter ficado desapontado com o realizador William Wyler por este ter escolhido Charlton Heston para o papel principal de “Ben-Hur”, que Douglas desejava para si, depois de já ter trabalhado com o realizador no filme “Detective Story – A História de Um Detective” (1951). Mais tarde, Edward Lewis, um dos vice-presidentes da “Bryna Productions”, a produtora de Kirk Douglas, fez chegar ás suas mãos o livro “Spartacus”, escrito por Howard Fast em 1951 e que, no entender de Lewis, tinha uma temática interessante de um homem a desafiar o poderoso Império Romano. O actor ficou de tal modo impressionado com o livro que comprou os direitos de adaptação a Fast pagandodo seu próprio bolso. Depois de conseguir que Laurence Olivier, Charles Laughton e Peter Ustinov entrassem no projecto e que Edward Lewis produzisse, Douglas conseguiu um financiamento final da parte da “Universal Studios”. Faltava agora o argumento e um realizador.
   
O livro que deu origem ao filme
Howard Fast foi contratado para escrever o argumento do seu próprio livro, mas sentiu dificuldades em se adaptar ao formato. Para o seu lugar foi chamado Dalton Trumbo, argumentista já com créditos firmados em Hollywood e vencedor de dois Ocares da Academia. Mas Trumbo tinha um problema: o seu nome fazia parte da lista negra dos “ Dez de Hollywood”, indicados e acusados de serem membros do partido comunista e de desrespeito ao Senado e á Comissão que os interrogou. Dalton Trumbo queria escrever o argumento sob o pseudónimo de “Sam Jackson”, mas Douglas, depois de falar com Lewis, fez questão que Trumbo assinasse o argumento com o seu próprio nome. Para realizar o filme, Kirk Douglas queria “Sir” David Lean, que realizara em 1957 “The Bridge on the River Kwai – A Ponte do Rio Kwai” que triunfara nos Oscares ao vencer os de Melhor Filme do Ano e de Melhor Realizador. Lean recusou e Douglas contratou então Anthony Mann, então conhecido como realizador de westerns como “Winchester ’73 – Winchester ‘73” (1950) ou “The Man from Laramie – O Homem que veio de Longe” (1955), que acabou despedido ao final da primeira semana de rodagem (dele apenas ficou toda a sequência inicial até Spartacus ser comprado por Batiatus), alegadamente por incompatibilidade criativa com Kirk Douglas. O actor lembrou-se então de Stanley Kubrick com quem trabalhara no filme “Paths of Glory – Horizontes de Glória” (1957), um drama situado durante a Primeira Guerra Mundial e da qual o actor só tinha boas recordações do bom relacionamento com o jovem realizador. Douglas abordou o realizador e este aceitou a tarefa.
   
A rodagem revelou-se uma tarefa difícil para Kubrick pois estava em constante conflicto com Trumbo por causa da personagem de Spartacus que o argumentista via como sendo imaculado, sem falhas de carácter e Kubrick queria-a complexa e com peculiaridades (como viriam a ser algumas das suas personagens em obras futuras). Kirk Douglas aceitou ambas as visões e pediu a Trumbo que reescrevesse algumas cenas para conterem a visão do realizador. Também no campo da direcção de fotografia houve conflicto entre o realizador e Russell Metty, o veterano director de fotografia com uma vasta experiência em grandes produções nas décadas anteriores. Metty recusava-se a receber instruções precisas do realizador sobre o trabalho das cameras e da utilização da luz. Quando Metty ameaçou demitir-se da produção, Douglas, sabendo que Kubrick tinha sido fotógrafo no início da sua carreira, portanto sabia o que fazia, aceitou sua demissão e Kubrick assumiu também a direcção de fotografia. Na ficha técnica, no entanto, manteve-se o nome de Metty.
   
O elenco de Spartacus
Varinia e Spartacus
Em termos de elenco, “Spartacus” é um filme incrível, com uma variedade de interpretações que vão desde a mais fraca até à melhor. Se a prestação de Tony Curtis, como Antoninus, o escravo educado e letrado que começa como sendo escravo pessoal de Marcus Crassus que depois percebe que nunca será mais nada do que um entretenimento pessoal do romano e que se junta ás hostes de Spartacus onde o seu tratamento é completamente diferente do que fora anteriormente, o que o leva a tomar uma decisão única, é a interpetação mais fraca do filme (não por culpa do actor, mas porque o papel assim o dizia), pelo meio temos Kirk Douglas, no papel de Spartacus onde o actor mostra a sua versatilidade como o escravo-gladiador iletrado e inocente nas coisas da vida mas que ousou sonhar com a liberdade e afrontar a toda poderosa Roma; Jean Simmons é Varinia, a escrava que desperta sentimentos em Spartacus e cujo romance se torna num dos sub-argumentos do filme sem no entanto interferir na história em si, são momentos subtis e cautelosamente introduzidos no início do filme sem interferirem directamente na acção (é um dos grandea achados do filme); depois vêm as verdadeiras lições de interpretação dadas por Charles Laughton como Gracchus, o grande rival de Crassus no Senado Romano e o único que o pode deter na sua ambição de se tornar dono de Roma; Laurence Olivier é Marcus Crassus, o ambicioso senador que aceita chefiar as legiões de Roma e capturar e destruir Spartacus e o seu exército de modo a tornar-se no Primeiro Homem de Roma. A interpretação do actor britânico é excepcional de tão incisiva e realista que é; finalmente Peter Ustinov, como Lentulus Batiatus, o dono da escola de gladiadores, é perfeitamente brilhante no seu papel. Batiatus tenta estar sempre de acordo com deus e o diabo (Gracchus, no primeiro caso, que idolatra e que o ajuda no final e Crassus, no segundo, a quem tem de agradar para conseguir os seus intentos e manter a sua escola aberta). De todas as interpretações, a de Ustinov é aquela que marca verdadeiramente o filme e com a qual seria premiado com um Oscar da Academia.
   
Stanley Kubrick na rodagem
Quando Stanley Kubrick pegou no projecto, só tinha quatro filmes realizados e todos de baixo orçamento (“The Killing – Um Roubo no Hipódromo” de 1956 e “Paths of Glory – Horizontes de Glória”de 1957, posteriormente seriam considerados obras-primas cada uma dentro do seu género). “Spartacus” era algo maior, não só em termos de orçamento, como também no elenco carregado de nomes de peso e no número de figurantes. Mas o realizador mostrou-se á altura do desafio, apesar de se perceber que o controle não era totalmente seu ( como se viria a ver nos anos e nas obras seguintes que realizou), Kubrick deixou a sua marca e o seu lendário perfeccionismo bem vincado na obra (toda a sequência da batalha final é disso exemplo).
   

A ideia patente no filme é a da luta pela liberdade, mesmo quando a própria vida está em risco. É uma história de luta contra a prepotência dos Estados o que torna o filme, de certa forma, um produto da época em que foi feito, onde a visão do século XX ao passado é a génese da ideia principal ( a narrativa inicial, em voz off, é um exemplo disso mesmo). Esta mesma ideia está explícita na cena em que depois da derrota do exército dos escravos, Crassus procura encontrar Spartacus entre os prisioneiros e oferece mesmo o perdão ( e o consequente regresso á condição de escravo) a quem o identificar. Os sobreviventes respondem com um quase uníssono “I’m Spartacus!” (que foi uma ideia que Fast usou no seu livro) e, para a década em questão (anos 60) a frase viria a tornar-se icónica na luta contra o McCarthismo (se fosse hoje, tornar-se-ia viral!).
    “Spartacus” antes de estrear foi submetido á apreciação da Comissão de Censura que pressionou o estúdio a fazer cortes de algumas cenas consideradas demasiado violentas e outras onde se fazia referência a orientações sexuais de algumas personagens. No meio de alguns protestos por parte dos produtores e do realizador (que o renegou durante anos), o filme estreou em outubro de 1960 com menos 23 minutos do que a sua duração original (a primeira versão que foi exibida antes da estreia e das polémicas que a rodearam, tinha 202 minutos de duração, mas algum desse material foi considerado perdido quando o filme foi remontado). Durante décadas o filme foi exibido numa versão de 176 minutos, até que em 1991, o estúdio autorizou uma primeira restauração do filme, tendo em conta o sucesso que havia sido alcançado dois anos antes com a restauração de “Lawrence da Arábia”, o clássico que “Sir” David Lean tinha realizado em 1962.
A cena do banho censurada na estreia do filme
    O responsável por essa restauração tinha sido Robert A.Harris. Steven Spielberg foi um dos responsáveis pela restauração de “Spartacus”, tal como tinha acontecido em 1989 com o filme de Lean e pediu que Stanley Kubrick fosse informado do que se estava a passar e queria, tal como os produtores do filme, que o realizador desse a sua aprovação final ao trabalho e ao de Harris. A restauração de cerca de 11 minutos, incluiu a abertura, intervalo e final (fundo preto com as palavras “Ouverture”,“Intermission” e “Closing” e a banda sonora de Alex North), algumas cenas de batalha, uma ou outra sequência mais prolongada e a cena do banho em que Crassus tenta seduzir o seu criado, Antoninus, em que fala da analogia entre comer ostras e comer caracóis (para expressar que as preferências sexuais de cada um são mais uma questão de gosto do que de moralidade). A banda sonora da cena estava estragada, teve de ser refeita. Tony Curtis repetiu as suas linhas e como Olivier já tinha morrido em 1989, a sua voz foi dobrada por “Sir Anthony Hopkins. O realizador, que entretanto regressou ao projecto, a residir permanentemente em londres, enviou as instruções sobre como a cena deveria ser feita. O resultado não poderia ter sido melhor e, depois de uma segunda restauração em 2015 onde lhe foram inseridos mais 12 minutos, “Spartacus” finalmente estava no seu esplendor total e pronto para estrar novamente, 55 anos depois da sua estreia original.
   
Além de ganhar o Oscar para Melhor Actor Secundário, o filme venceu ainda noutras três categorias todas técnicas, num total de seis nomeações que não incluíam nem as de Melhor Filme, Melhor Realizador e Melhor Actor. “Spartacus” deu origem a diversos outras produções internacionais, sem grande destaque, ao longo das décadas subsequentes. Recentemente um telefilme, “Spartacus”, realizado em 2004 por Robert Dornhelm e uma série de televisão, “Spartacus” entre 2010 e 2013, criada por Steven S.DeKnight, vieram chamar novamente a atenção para o filme de 1960. O filme de Kubrick permanece como uma das grandes superproduções da era dourada de Hollywood e uma certa vontade de afrontar o sistema e os poderes instituídos na meca do cinema.





Nota do autor - As imagens e vídeo que constam neste texto foram retiradas da Internet

quinta-feira, 14 de maio de 2020

MAHAVISHNU ORCHESTRA – MÚSICA DE FUSÃO
         Entre o final da década de 60 do século passado e meados da década de 70, a música sofreu muitas transformações, algumas delas foram derivadas da conjuntura socio-política que se vivia naqueles tempos: foi a guerra do Vietname que esteve na génese do chamado “Flower Power”, do movimento “Hippie” que teve o seu apogeu nesse memorável festival de música pop que ocorreu em Woodstock, nos arredores de Nova York, em 1969.
Já nos anos 70, foi a vez do Rock Progressivo tomar conta da cena musical. Inspirando-se no psicadelismo musical, derivado das experiências  com drogas como o LSD,  que muitos músicos experimentaram durante os anos 60 e  na altura em que os Pink  Floyd se haviam afirmado como um grupo inspirador deste novo género musical,  bandas como Yes, Genesis, Emerson  Lake & Palmer, Focus,  King Crimson, entre muitos outros, vieram mostrar todo o seu virtuosismo técnico em composições enormes: letras inspiradoras e instrumentações a tocar um brilhantismo fora-de-série em muitos casos.
         
       
John McLaughlin, o mentor da Mahavishnu Orchestra
Outros géneros houve que, nesta década, se fundiram com o rock. Foi o caso do Jazz, um estilo com uma grande vertente musical, nascida no final do século XIX em Nova Orleans, no Estado de Louisiana, que juntava desde música religiosa de inspiração afro-americana com vários outros estilos e instrumentos  musicais, tendo tido grande expansão e aceitação durante as décadas de 20 e 30 mantendo-se sempre nesse registo até ao início da década de 70, quando sofreu uma transformação que o mudou por completo, modificando também a visão e, em muitos casos, a opinião, para melhor, mas também para pior, que se tinha daquele género musical. A Mahavishnu Orchestra foi um dos grupos impulsionadores desta transformação.
            
O grupo veria a luz do dia em 1971, na cidade de Nova York, pela mão do guitarrista britânico John McLaughlin que já tocara com nomes grandes da música como Jimi Hendrix, Miles Davis, Tony Williams, entre outros que lhe permitiram tocar diversos géneros musicais desde blues, passando pelo rock e fixar-se definitivamente no Jazz onde desde cedo quis primar pela diferença. A ele, nesta busca pela diferença musical, viriam a juntar-se o baterista panamiano Billy Cobhan, o baixista irlandês Rick Laird, o teclista checoslovaco Jan Hammer  e o violinista americano Jerry Goodman. McLaughlin já trabalhara com Cobhan e Goodman no seu terceiro álbum a solo, “My Goal’s Beyond” (1971).  John queria o seu amigo francês Jean-Luc Ponty para violinista, mas devido a problemas de emigração que envolveram o músico francês, McLaughlin trouxe Jerry Goodman. No baixo John queria Tony Levin, mas este não estava disponível, por isso a escolha caiu sobre Rick Laird, que já conhecia o britânico. Jan Hammer foi recomendado por Miroslav Vitous dos “Weather Report” que era amigo de John McLaughlin.
          O grupo juntou-se em julho de 1971 para ensaiarem durante uma semana pois tinham sido convidados para fazer a primeira parte de vários concertos de John Lee Hooker em Nova York. A primeira noite não correu muito bem, mas a segunda e seguintes foram bem melhores e foi pedido ao grupo que ficasse para actuar mais algumas noites. As ideias de McLaughlin para a instrumentação do grupo eram muito específicas pois ele queria contribuições musicais de todos os músicos de modo a conceber a mistura de vários géneros nas composições, nomeadamente contribuições do violino e do sintetizador na sonoridade geral do grupo. Esta mistura resultou de tal maneira que o grupo ficou mais duas semanas a actuar no “Gaslight at the Au Go Go”, antes de entrarem em estúdio.
            
No final de 1971, “The Inner Mounting Flame” chegava ás lojas  Desde o tema inicial, “Meeting of the Spirits”, que se  percebe que uma mistura de sons exótica, doseada com grandes momentos de puro improviso por vezes numa cadencia acelerada orientada pela batida de Billy Cobhan (como no tema “Noonward Race”) ou em momentos do virtuosismo acústico de McLaughlin  no tema “A Lotus in Irish Streams”. O estilo musical do álbum resultou numa mistura de géneros (que seria inicialmente a marca do grupo) que iam desde o rock puro ao funk,  a ritmos próprios da música europeia, passando, devido ao interesse de McLaughlin na música clássica indiana ( o que o levaria a adoptar o nome de “Mahavishnu” que lhe foi dado pelo Guru indiano Sri Chinmoy, pouco tempo depois do grupo começar a actuar em grandes concertos e festivais) por ritmos complexos e pouco habituais de ouvir. A sua música era totalmente instrumental tanto no primeiro álbum como no segundo, intitulado “Birds Of Fire”, que seria editado em 1973. Tal como o seu antecessor, este álbum consiste em temas escritos por John McLaughlin,  mostrando as diversas influências musicais que presidiam á formação musical, alguns deles quase a raiar o perfecionismo musical como “One Word” (onde está patente a harmonia musical entre todos os instrumentos) ou “Celestial Terrestrial Commuters” que consiste num magnifico diálogo entre a guitarra de McLaughlin e o violino de Goodman, mediado pelo sintetizador de Jan Hammer, não esquecendo “Miles Beyond” dedicado a Miles Davis com quem John McLaughlin tocou em várias ocasiões no início da sua carreira. A meio de 1973, “A Mahavishnu Orchestra” andava nas bocas do mundo da música, os dois álbuns vendiam bem e o grupo era permanentemente solicitado para concertos em festivais, eventos musicais e até haviam encetado uma mini-tournée europeia, durante o ano de 72, que os apresentara ao velho continente.  Mas, como tudo aquilo que é bom, cedo se começa a degradar.

Enquanto o ano de 1973 ia avançando, o grupo começou a mostrar alguma tensão interna. A pressão da fama súbita, exaustão e alguma falta de comunicação entre os membros do grupo, apenas acelerou os conflictos que atingiram repercussões enormes e desastrosas durante as gravações de um novo álbum de originais nos estúdios da Trident, em Londres, onde a banda chegou ao cúmulo de os seus elementos não falarem uns com os outros, descontentes com a liderança de McLaughlin que chegou ao ponto de não permitir que temas compostos pelos seus companheiros fizessem parte do alinhamento, quer dos álbuns quer dos concertos ao vivo. A gravação ficaria incompleta e permaneceria assim até 1999, quando houve um redescobrimento da música do grupo e as “masters” originais do álbum inacabado foram descobertas em perfeito estado de conservação (apesar de terem sido gravadas 26 anos antes!). O material encontrado consistia em temas escritos por todos os membros da banda, com especial incidência em McLaughlin e era mais que suficiente para editar em álbum. Com a devida autorização de todos os envolvidos, foi editado “The Lost Trident Sessions”. O grupo nunca mais se recompôs destas guerras internas, mas ainda tinham compromissos a cumprir em Nova York.
             
Em agosto de 1973, o grupo actuou duas noites no “Schaefer Music Festival” , que reunia grandes nomes do jazz e que acontecia anualmente no Central Park . O material que tocaram fazia parte do novo álbum que deveria ter saído em junho, mais alguns temas dos dois álbuns anteriores. Apesar da enorme tensão que existia entre todos, esta não foi visível na sua actuação que foi unanimemente considerada a melhor do festival. Três dos temas tocados nas duas noites, foram aproveitados para o único álbum oficial do grupo ao vivo, “Between Nothingness & Eternity” que seria lançado em novembro de 1973 quando o grupo já se separara. É o melhor exemplo da energia que o grupo tinha quando se encontrava em palco. Em 2011, quando foi editada uma caixa com os álbuns originais da primeira formação do grupo, incluindo “The Lost Trident Sessions”, vinha também um outro CD intitulado “Unreleased Tracks from Between Nothingness & Eternity” que continha os outros temas gravados durante os concertos do Central Park.
            Mas  a separação não parou John McLaughlin que, logo em 1974, reformulou o grupo com um novo elenco de músicos: trouxe finalmente  Jean-Luc Ponty ( que entretanto havia resolvido os problemas de emigração e já tocara com Frank Zappa e os “Mothers of Invention”) para tocar violino. ao qual se juntou Gayle Moran, nos teclados, Ralphe Armstrong no baixo, Narada Michael Walden (anos mais tarde viria a tornar-se um produtor de sucesso) na bateria, aos quais ainda juntou outros músicos para sessões de estúdio. A “nova” “Mahavishnu Orchestra”, como lhe chamou McLaughlin, foi para Londres gravar com a “London Symphony Orchestra” o seu álbum seguinte, intitulado “Apocalypse”
O álbum é, tal como o seu título indica, uma revelação musical a todos os níveis, muito graças ao facto de tocarem com uma orquestra completa . Desde as secções de cordas, passando pelos metais e continuando na guitarra inconfundível de McLaughlin no tema “Visio nis A Naked Sword” ou nas secções mais calmas, melodias mais suaves e estimulantes de “Wings of Karma” que nos preparam para o grande momento do álbum, “Hymn to Him”, em que o quinteto nos mostra o que melhor sabe fazer. As variações entre o violino de Ponty e a guitarra de McLaughlin no climax do tema, são o verdadeiro ponto alto deste álbum perfeito em todos os sentidos, apesar da estupefacção e algum afastamento com que foi recebido pelos fans do grupo.
a primeira reencarnação da MO
     Em 1975, satisfeito com  experiência em Londres, McLaughlin manteve a estrutura do grupo e o recurso a músicos de estúdio para gravar um novo álbum, “Visions of Emerald Beyond”, que, apesar de manter a qualidade musical do seu antecessor, permanece como um dos álbuns menos apreciados do grupo, talvez por conter alguns temas que soam como uma espécie de ritmo “funkie”, uma vertente musical que McLaughlin nunca explorara anteriormente. Seja como for o álbum tem momentos de verdadeiro delírio musical como o tema “Eternity’s Breath” onde a guitarra soa pesada, a bateria de Walden é forte e propulsiva e o violino de Ponty tem momentos de verdadeira magia musical que o músico nunca atingiu nos seus álbuns a solo. “Cosmic Strut”, escrito por Michael Walden é um verdadeiro tema “funkie” e, goste-se ou não, somos contagiados pelo ritmo. 

          Mas o álbum não conseguiu convencer aqueles que pensaram que esta era uma reencarnação da “Mahavishnu Orchestra” original. Quando se percebeu que isso não iria acontecer, viraram as costas ao grupo, que, após alguns dissabores internos, nomeadamente a partilha de créditos musicais entre Jean-Luc Ponty e John McLaughlin, levou a que o francês batesse com a porta e partisse para uma carreira de sucesso a solo, a que se seguiu a saída do teclista Gayle Moran por desavenças criativas com McLaughlin. 
Reduzida a quatro elementos, com Stu Goldberg, um dos músicos das sessões de estúdio a assumir os teclados, o grupo gravou em 1976 o álbum “Inner Worlds”, onde a criatividade dos músicos e a diversidade musical nunca deixa de estar presente em vários temas com créditos repartidos entre McLaughlin e Walden. “All in the Family” é um tema inspirado e cheio de energia e muito apoiado na bateria e nas marimbas de Walden, enquanto “Miles Out” contém um momento “jamming” de McLaughlin e a sua guitarra, “Planetary Citizen” traz o momento “funkie” inspirado ainda nos temas de “Visions”, o tema-título traz John McLauglin a tocar uma guitarra-sintetizador ainda muito no início. Mas este álbum seria o canto do cisne para esta versão da “Mahavishnu Orchestra”, pois McLaughlin queria explorar outras e novas vertentes musicais que o afastavam irremediavelmente do som do grupo. Teriam de passar quase dez anos até que uma nova encarnação da “Mahavishnu Orchestra” (a terceira) surgisse.
            
Depois de várias experiências musicais, umas com mais sucesso que outras, em 1984, McLaughlin reformula a “MO” com Bill Evans, um dos seus músicos favoritos, no saxofone, Jonas Hellborg no baixo, Mitchel Forman nos teclados e consegue que Billy Cobhan, membro original do grupo, regresse para assegurar a bateria apenas nas sessões de estúdio. Gravam o álbum “Mahavishnu” que não conseguiu convencer, nem público nem os críticos que acharam que os músicos não tinham a focagem que o grupo original tinha e que McLaughlin perdera o seu toque de midas na guitarra em detrimento de um uso mais extensivo da guitarra sintetizada. 
Em 1987, já sem Billy Cobhan, substituído por Danny Gottlieb, a “MO” grava o seu último álbum, “Adventures in Radioland” que, apesar de ser superior ao seu antecessor e mostrar que esta nova “MO” tinha pernas para andar. A inspiração musical estava lá com bons momentos de virtuosismo musical, não conseguiu convencer ninguém e pouco mais havia a fazer. Claramente e em face da evolução musical presente na década de 80, a “MO” já não tinha razão para continuar activa. McLaughlin percebeu isso rapidamente e arrumou o projecto na gaveta e foi dedicar-se novamente á sua carreira a solo, felizmente, com grande sucesso.
            Para a história da música e do jazz em particular, fica um grupo que ousou romper as barreiras entre géneros e estilos musicais e criar um sub-género único que veio a influenciar muitos artistas e grupos da cena jazz e também nos outros géneros que proliferaram na música durante as décadas de 70 e 80 do século XX.
Nota: as imagens e vídeo que ilustram o texto foram retiradas da Internet.






domingo, 19 de abril de 2020

                                 TWIN PEAKS III – O MISTÉRIO CONTINUA

         Em 1991, a ABC Television Studios decidiu suspender a série “Twin Peaks” que ia a meio da sua segunda temporada, alegadamente por quebra de audiências. A primeira temporada desta série tinha sido um sucesso quase sem precedentes, alcançara níveis de audiência nunca antes vistos e, mais importante que tudo, mudara a forma de fazer televisão para sempre. Os seis episódios que constituíam essa temporada giravam em volta de uma única pergunta que a todos intrigava: “Quem matou Laura Palmer?”

       A resposta à pergunta surgiu e foi revelada, mas com ela vieram também outras perguntas e outros mistérios que, dado o enorme sucesso obtido, seriam respondidas numa segunda temporada que entretanto já fora encomendada e já se encontrava em plena produção. 29 novos episódios que se propunham a aprofundar e revelar quais os acontecimentos que decorriam no quotidiano de Twin Peaks e que haviam levado a que  Laura Palmer, a rainha da beleza da cidade fosse assassinada.

      Há medida que íamos sendo enredados nos mistérios de Twin Peaks, o público ia perdendo o interesse porque achava que os rumos que a nova temporada tomara, com a adição de novas personagens  e a saída de cena de outras, estavam longe das orientações iniciais da série e levaram ao cancelamento da sua exibição logo após o último episódio desta temporada. No entanto ficou no ar o mistério sobre o que é que era afinal o “Black Lodge” e porque é que a personagem (ou espírito) de Laura Palmer no final do episódio, dentro do “Black Lodge”,diz ao agente do FBI, Dale Cooper, que se voltarão a encontrar dali a 25 anos? A resposta, talvez tenha (ou não) sido encontrada a partir de 2016 (imagine-se 25 anos depois do ultimo episódio da segunda temporada!!) na nova temporada de Twin Peaks! Pelo meio, em 1992, Lynch ainda voltou ao universo da pequena cidade americana com “Twin peaks – Os Últimos sete dias de Laura Palmer”, uma espécie de prequela da série que terminava com a morte da rainha da beleza daquela cidade, mas problemas na produção, nomeadamente as restrições impostas pelo produtor quanto á duração do filme, mais a má recepção geral quando o filme estreou, ditaram o final prematuro daquele universo fantástico e prometedor...até 2016!
            
Os rumores de um eventual regresso da série começaram em 2013, quando Lynch filmou um vídeo promocional para ser incluído nos extras da edição em Blu- Ray de “Twin Peaks: The Complete Mystery”. Quando questionado sobre um eventual regresso da série, respondeu que era uma possibilidade, mas que teria de se esperar. Em outubro de 2014, a “Showtime” anunciou que iria exibir uma mini-série em nove episódios, escrita por David Lynch e Mark Frost e os episódios realizados por Lynch e que não se tratava de nenhum “remake” ou “reboot”, mas sim uma continuação da série. Entre avanços e recuos, o elenco possível das temporadas anteriores foi sendo reunido (practicamente todos voltaram para vestir a pele das suas personagens), o argumento ia sendo desenvolvido e, em breve, de nove episódios, a série chegou aos dezoito episódios, com Lynch a realizá-los todos (apesar de, a principio, ele só querer realizar nove). Com o argumento todo escrito, a rodagem, que decorreu entre setembro de 2015 e abril de 2016, pode começar como um todo que depois seria editado para caber nos 18 episódios planeados.
            Passaram-se 25 anos desde que Laura Palmer, estudante de 17 anos e rainha da beleza da cidade de Twin Peaks, mas também com uma vida dupla, foi assassinada. A sua morte despoletou diversos acontecimentos que tiveram consequências, quer a nível social, quer a nível pessoal nos habitantes da pequena cidade do estado de Washington. Mas, se por um lado, o crime aparentemente terá sido resolvido pelo Agente Especial do FBI, Dale Cooper enviado para o efeito, outros mistérios e acontecimentos ficaram por esclarecer.
            Para se entender o universo de Twin Peaks, a típica cidade americana pacata, mas cheia de mistérios, é preciso recuar até ao 3º episódio da primeira temporada, a uma cena em que no “Double R Diner”, o restaurante central da cidade, Harry S.Truman (Michael Ontkean), Xerife de Twin Peaks, acompanhado do seu adjunto, Hawk (Michael Horse) e de Ed Hurley (Everett McGill), dono de um posto de abastecimento da cidade, revelam ao Agente  Especial do FBI, Dale Cooper (Kyle McLachlan), encarregado de descobrir quem matou Laura Palmer, que Twin Peaks não é como as outras cidades americanas, existem, nos seus bosques, coisas más, presenças que, desde tempos imemoriais, os homens têm tentado combater, mas que se recusam a ir embora. Cooper, que gosta das coisas do oculto, mostra-se interessado em estudar este mistério, sem, no entanto, se desviar do assassinato de Laura Palmer. É aqui que nasce, no meu entender, todo o interesse pela série que mudou a televisão. É um mistério muito mais profundo do que aquilo que se passava na altura em que estreou a série e que, depois da terceira temporada, ainda mais profundo ficou.
       
David Lynch, um dos criadores de Twin Peaks
A dualidade sempre fez parte do universo de Twin Peaks e parece ter um importante papel a desempenhar em toda a trama: se existe o “Black Lodge” também existe o “White Lodge”; Sheryll Lee, a actriz que faz de Laura Palmer, regressa a meio da primeira temporada no papel de Madeleine Ferguson, prima de Laura  e parecidíssima com ela; ou até o próprio título da série, revela alguma dualidade quanto ao seu verdadeiro significado, mas em “Twin Peaks – The Return”, essa mesma dualidade é fonte de tragédia e agitação e isso torna-se mais que evidente há medida que a série se encaminha para o seu final, já que, percebe-se, que a David Lynch apenas lhe interessa retratar os traumas da maldade humana em vez do aparente e profundo poder do amor. Temos pois, um realizador que se dedica a explorar os mundos internos do trauma humano  tão bem  retratado no final do último episódio (o grito furioso, algo descontrolado e aterrorizante de Laura Palmer/Carrie Page, ao perceber a personalidade multidimensional do seu próprio ser e a passagem brusca para o escuro do écran), é profundamente triste. É Lynch no seu melhor!
            
Há 25 anos atrás, O Agente especial Dale Cooper do FBI, “viajou” para o “Black Lodge” onde “há sempre música no ar” (talvez por por isso, os episódios de “Twin Peaks – The Return”, terminem sempre com um número musical no “Roadhouse”), para resolver o mistério da morte de Laura Palmer e para acabar de vez com os poderes demoníacos de Bob que ele impusera em Twin Peaks. Lá, encontra o espírito de Laura num estado de angústia total impossibilitado de descansar para toda a eternidade. Cooper, vê-se obrigado a “viajar” novamente, mas desta vez com consequências para si, porque o seu espírito divide-se em duas partes, formando dois duplos de si mesmo: um é o calmo e tranquilo “Dougie Jones”, homem de negócios, casado e pai de filhos; o outro é “Mr.C”, assassino bruto e violento que tem de encontrar o seu caminho desde o Dakota do Sul até á cidade de Twin Peaks não olhando a meios para o fazer. No seu encalço estão, além de assassinos contratados (que chegam a confundi-lo com “Dougie”), Gordon Cole, chefe do FBI (uma interpretação carismática de David Lynch) e Diane Evans, secretária de Cooper (a misteriosa Diane para quem o agente do FBI ditava indicações no pequeno gravador que trazia sempre consigo, interpretada por Laura Dern). Ambos os duplos têm que se reunir ao seu “eu” verdadeiro (o Cooper que ficou impossibilitado de sair da sala vermelha no “Black Lodge”). Quando isso acontece, Dale Cooper, finalmente liberto da sua prisão, tem de “viajar” novamente e desta vez intacto, para outra dimensão e assim completar a sua missão (dar paz ao espírito de Laura). A sua regressão temporal acontece no momento interdimensional de tormento quando Laura se aventura nos bosques de Twin Peaks para conhecer a sua morte. Cooper oferece-se para a ajudar a evitar ser morta impedindo assim todos os acontecimentos na cidade de acontecerem. Mas os espíritos do “Black Lodge”, não podem permitir que ambos os duplos caminhem em simultâneo sobre a terra. O espírito de Laura desaparece e no seu lugar aparece Diane que viaja com Cooper para o Texas onde nova revelação será mostrada ao agente do FBI. É-lhe apresentada uma empregada de mesa que se parece com Laura Palmer, mas que se chama Carrie Page. Cooper trá-la de volta para Twin Peaks e leva-a até á casa onde Laura vivera e também onde o espírito de Bob a violara pela primeira vez e onde finalmente tudo será resolvido...ou talvez não!. Esta última parte permite que Lynch exponha um dos seus maiores e mais significativos temas: a inevitabilidade da natureza.
            
Os duplos do Agente Especial do FBI, Dale Cooper
O que se assiste em “Twin Peaks – The Return” é, não só ao final de uma história começada há mais de 30 anos, com o trágico destino de Laura Palmer, brutalmente violada e assassinada, como também é uma reescrita completa (não um “reboot”!) de um longo filme de terror dividido em 18 partes, cada uma mais terrível e bizarra que a outra, mas, das quais, o espectador simplesmente não consegue ignorar e passar á frente, porque todas elas são verdadeiramente aterrorizantes. Também ao longo dos episódios, o realizador vai-nos dizendo que o mal existe no mundo, mas que, no seu entender, é criado pelo Homem e não nos vai deixar tão cedo. Esta ideia é perfeitamente ilustrada no episódio mais visto, mais estudado, de todos desta temporada: o 8º episódio, intitulado “Gotta Light?”. Totalmente filmado num magnífico preto-e-branco (nem poderia ser de outra maneira, senão não teria o impacto que teve nos espectadores!), começa com uma explosão atómica no Novo México em 1945, da qual, vemos, ao longo de todo o episódio, o nascimento de uma cidade de lenhadores (que, percebemos mais tarde, dará origem ao “Black Lodge”). Este episódio metamorfoseia a tese de que as pessoas boas podem ser corrompidas através das más intenções com aquela outra que diz que todo o mal é culpa do Homem e só do Homem. Aqui percebemos também que Bob, o demónio que violava Laura Palmer desde criança e que possuiu o seu pai, Leland, era na realidade um ser de outro mundo e no qual se tropeçou por acaso e que despertou do seu longo sono, mas este episódio diz-nos ainda mais, que o desejo de fazermos mal uns aos outros, foi o que despertou Bob e o seu mundo, O “Black Lodge” e também que a bomba atómica no início do episódio foi meticulosamente planeada e fabricada por uma espécie que queria destruir o seu próximo.
            
A Misteriosa Diane 
Confusos?! Não fiquem, porque, afinal de contas, estamos a lidar com um realizador habituado a mexer com todos os nossos sentimentos graças á sua enorme criatividade, associada a alguma genialidade incompreendida. Foi essa mesma genialidade criativa que criou, há mais de 30 anos, este universo bizarro, esta cidade intrigante, mágica, misteriosa, mas sempre fascinante, aos quais gostamos de voltar para nos deixarmos encantar uma e outra vez.


Nota: as imagens e video que ilustram o texto foram retiradas da Internet.








sábado, 28 de março de 2020

                             MANON DAS NASCENTES – UM DRAMA RURAL II

            Em anos recentes, o cinema tem vindo a assistir a histórias que, de um momento para outro, se transformam em dezenas de pequenas coisas com muita acção, carros que são arremessados pelo ar, personagens são esburacados por tiros, heróis que num momento de perigo conseguir esboçar piadas ou frases feitas, tudo isto sem qualquer relação com o fulcro da história que se tenta contar, etc. e tudo em nome de quê? De dinheiro. Hoje em dia, infelizmente, substitui-se a qualidade duma construção narrativa pelo “box-office” que esse filme possa fazer, é um sinal dos tempos.
        Com “Manon das Nascentes”, que é a conclusão da história iniciada em “Jean de Florette”, Claude Berri, o seu realizador dá-nos precisamente o oposto daquilo que escrevi acima. Avança com ritmo certo ao longo dos acontecimentos de quatro gerações, demonstrando com grande qualidade o impacto que os pecados dos pais podem vir a ter nos filhos. Apesar deste poder ser visto sem se ver o filme anterior, impacto só é compreendido na sua grandeza depois de se ver toda a história desde o princípio; só então é que o final do filme pode ser entendido na sua totalidade.
         
Passaram-se dez anos desde os acontecimentos de “Jean de Florette”. Ugolin Soubeyran (“Galinette”, é como lhe chama o seu tio, César), é um próspero homem de negócios graças á plantação de cravos que faz em “Les Romarins”, propriedade que pertencera a Jean Cadoret, antigo cobrador de impostos que herdara o terreno e que nunca o conseguiu cultivar por falta de água, graças a um esquema montado por César e Ugolin que taparam a nascente. Jean acabou por morrer, e César e o seu inútil sobrinho compraram a propriedade a Aimée, viúva de “Jean” que queria regressar a Paris, por um preço barato e destaparam a nascente. Entretanto, “Manon”, filha de “Jean”, foi viver para as montanhas com um casal idoso de poceiros e tornou-se numa linda pastora. Um dia Ugolin vê-a a tomar banho e apaixona-se obsessivamente por ela, mas “Manon” não quer nada com ele porque nunca esqueceu aquilo que testemunhou ainda criança e anseia por vingança contra quem lhe destruiu a família.

Emmanuelle Béart é o nome que se junta ao elenco que transitou do filme anterior, Yves Montand e Daniel Auteuil. A actriz, que já havia actuado em outras produções francesas, consegue aqui o papel que lhe deu fama tanto na frança como fora dela. A sua interpretação de “Manon” é magnética, consegue cativar a atenção do espectador através da sua beleza estonteante e interpretação poderosa, principalmente baseada nos seus olhos expressivos, daí que talvez as suas falas sejam espaçadas.
            
Apesar de rodados ao mesmo tempo, consegue perceber-se a diferença de tom e ritmo narrativo entre ambos. ”Jean de Florette”é leve, talvez devido ao optimismo ilimitado que preenche Jean na sua constante procura por água para as suas culturas e existem momentos em que parece que ele vai ter sucesso, apesar dos obstáculos postos no seu caminho por “César” e “Ugolin”. 
Em “Manon das Nascentes” o tom é cruel e sinistro. O feitiço volta-se contra o feiticeiro sem piedade, neste caso contra tio e sobrinho quando “Manon” começa a sua cruzada para vingar a morte do seu pai. Ironicamente não é a sua decisão que irá causar a destruição dos seus inimigos, mas sim outros acontecimentos que entretanto surgem e revelações que ninguém estava á espera.
            “Jean de Florette e “Manon das Nascentes”, ao longo das suas quase quatro horas de duração, avançam implacavelmente como se duma tragédia grega se tratasse. Vistos como um filme só, é um verdadeiro tratado sobre a natureza humana e o retrato que mostra é muito pouco lisonjeiro. Jean, cujas características que o definem são a sua inocência e, como já referi, o seu optimismo ilimitado, é destruído por aqueles que o rodeiam motivados pelo engano e pela ganância e interesse próprio. Existem momentos em que Jean parece ser indomável na sua vontade, mas, no fim, nem ele próprio consegue vencer a natureza e a crueldade dos seus pares. Ugolin e César, donos do poder na vila, se bem que são os principais culpados, não são os únicos; os habitantes da vila, ao encobrirem aquilo que sabem com o seu silêncio, também são culpados. No segundo filme, o poder muda de César e Ugolin para Manon e ela vinga-se sem dó nem piedade ou compaixão sobre tudo e todos. No final, Manon é a única a ter um final feliz.
       
     
Poderia dar-se o caso de um filme (ou melhor, dois) cujo enredo pormenoriza os problemas e tribulações em torno do abastecimento de água a uma comunidade agrícola rural, não ser interessante, mas não é o caso de “Jean de Florette” e “Manon das Nascentes”. Aquelas são só as situações que vão tecer a história, mas o cerne da questão é mesmo a complexidade das acções humanas e suas interações. As personagens ganham vida e parecem sair do écran. Claude Berri, responsável pelo argumento juntamente com Gerárd Brach, ao adaptarem a novela de Marcel Pagnol, tinham em vista um alcance maior. “Jean de Florette e “Manon das Nascentes” foram as suas primeiras produções a serem exportadas para o outro lado do atlântico e, com o sucesso que ambos os filmes obtiveram, as suas produções continuaram a receber alguma distribuição americana.
     
Nestes dois filmes, apesar da sensação de justiça poética que Berri pretende imprimir numa escala que apanhe gerações, ele é solidário com todas as personagens, até mesmo com aqueles cujos motivos são, acima de tudo, obscuros. Ele não os demoniza nem os trata como vedetas. Ele desafia-nos a aceitá-los tal como são, nos seus comportamentos e promessas e a passarmos algum tempo na sua companhia. As voltas e reviravoltas da narrativa, a qualidade das interpretações, a fotografia soberba novamente por Bruce Nuytten e a mestria da realização de Berri, tornam estes dois filmes parte da grande produção europeia e obras-primas da cinematografia francesa da segunda metade do século XX.
            Tal como “Jean de Florette”, “Manon das Nascentes”, quando estreou, alguns meses depois do seu antecessor, foi um grande sucesso e abriram-se-lhe as portas da época da premiação. Mas ao contrário do que acontecera com o primeiro filme, “Manon das Nascentes” ganhou apenas um “César” de melhor Actriz Secundária” para Emmanuelle Béart em dois possíveis e uma nomeação para os BAFTA de Melhor Filme Estrangeiro.  
Os dois filmes formam uma só narrativa complexa e indissociável (apesar de no final de “Jean de Florette” aparecer a palavra “intermission”), e não faz qualquer sentido ver um sem ver o outro. 
Este é uma das mais poderosas e emocionalmente complexas histórias alguma vez transpostas para o cinema. É uma tragédia de proporções épicas, mas numa escala pessoal e que nas mãos de outro realizador menos eficaz, provavelmente resultaria num filme lamechas e muito dado á lágrima. 







Nota: as imagens e vídeo que ilustram o texto foram retiradas da Internet


EMERSON, LAKE & PALMER II

            O trio, depois de um longo período de férias, sentindo-se revigorado, reuniu-se novamente em 1976, nos “Mountain Studios”, em Mo...