sexta-feira, 25 de agosto de 2023

“The Thing – Veio de Outro Mundo”

  

 

            


Na chamada "Época de Ouro" da ficção cientifica, nas décadas de 30 e 40 do século passado, muitos foram os contos que se escreveram sobre as mais diversas temáticas do género, muitos foram os autores que se descobriram nesta época, graças a John W.Campbell Jr., e à sua revista “Astounding Science Fiction” (1937-1971). Apelidado de "O Pai da Ficção Cientifica", foi um dos pioneiros nessa época e também responsável por um dos mais famosos contos do género,
"Who Goes There?" (1938), assim se chama o conto e deu origem a três filmes. Um primeiro, feito na década de 50, chamou-se “The Thing from Another World – A Ameaça" (1951) e, na altura, até assustou os espectadores, mas afastava-se da génese do conto, o que terá, provavelmente, levado Howard Hawks, cuja realização era partilhada com Christian Nyby a dado passo da produção, a afastar-se dela mantendo-se apenas na função de produtor e argumentista (não creditado). O segundo filme chamou-se "The Thing - Veio de outro Mundo", foi realizado em 1982 e adapta o conto quase na íntegra. Já em pleno século XXI, o conto voltou a ser adaptado, com o título “The Thing – A Coisa”, realizado em 2011 por Matthijs van Heijnigen Jr., e é uma prequela directa do filme de 1982. 

 

O original de 1951 "The Thing - A Ameaça"


   Não é de estranhar que tenha sido John Carpenter o realizador a assinar a segunda versão de "The Thing", pois se o original fora co-realizado por Howard Hawks, de quem o realizador é um confesso admirador, nunca iria defraudar uma obra que tivesse o cunho do seu ídolo, pelo contrário, levou a uma nova apreciação da obra. A produção teve início em meados da década de 70 e pretendia ser uma adaptação fiel do conto. Passou pelas mãos de diversos argumentistas, todos com ideias diferentes em como fazer a aproximação à história, mas sem sucesso e com o desagrado dos familiares do autor, até que Bill Lancaster argumentista de créditos firmados, nomeadamente pelo argumento do filme “The Bad News Bears – Que se Lixe a Taça” (1976), uma comédia de Michael Ritchie, com Walter Matthau, da qual John Carpenter era um fan, apresentou à Universal Pictures, detentora dos direitos de adaptação, uma  versão que satisfez tanto os administradores do estúdio, como os herdeiros de John W.Campbell Jr.  

       


Antes de chegar a Carpenter, o projecto esteve quase a ser entregue a Tobe Hooper, que estava nas boas graças da Universal, graças ao seu filme “The Texas Chainsaw Massacre – O Massacre do Texas” (1974), mas foi sol de pouca dura, já que os administradores ficaram pouco agradados com a abordagem pretendida pelo realizador e pelo seu argumentista. Seguiu-se John Landis que também ficou pelo caminho e o projecto foi arrumado á espera de nova oportunidade e ela chegou quando John Carpenter, no seu filme, hoje um clássico, de 1978, “Halloween”, prestou uma discreta homenagem ao seu ídolo ao colocar numa cena um miúdo a ver na televisão o clássico de Hawks. Releu a história e viu o filme várias vezes à procura de inspiração e entendeu que a história do conto era algo intemporal. Perante a insistência do estúdio, revitalizado com os sucessos obtidos pelos recentes filmes do realizador, além de “Halloween”, “The Fog – O Nevoeiro” (1980) e “Escape from New York – Nova York, 1997” (1981), Carpenter aceitou embarcar no projecto. Finalmente havia luz verde para uma nova adaptação de um dos mais famosos contos da era dourada do género da ficção científica.
            

Numa estação de observação meteorológica no Árctico, um grupo de cientistas americanos é surpreendido pela chegada de um helicóptero da base norueguesa vizinha que vem em perseguição de um cão na tentativa de o abater. O helicóptero é destruído junto com os seus ocupantes e o cão é acolhido pelos americanos. Depois deste estranho acontecimento, descobrem que a base dos noruegueses foi destruída e os seus habitantes dizimados por algo não identificado. Mais tarde, a alguns quilómetros da base destruída, descobrem aquilo que parece ser uma nave extraterrestre enterrada na neve e a alguns metros dela descobrem os restos do que deveria ser uma cápsula de um dos ocupantes da nave.

          
     


A escolha do elenco não foi fácil. Os produtores contactaram diversos actores. Nomes como Brian Dennehy, Kris Kristofferson, Ed Harris, Tom Berenger, Fred Ward, Peter Coyote, alguns nomes mais sonantes como Nick Nolte, Christopher Walken, Jeff Bridges, ou mesmo Sam Shepherd, foram convidados para entrar no filme, mas, enquanto alguns, não estavam interessados em entrar num filme de terror, outros, por uma ou outra razão recusaram. David Leith, Donald Moffat, Richard Dysart, ou Wilford Brimley aceitaram entrar no projecto. Carpenter ainda tentou junto dos produtores, David Foster e Lawrence Turman, a contratação de Donald Pleasence para o papel de Doc, mas foi recusado. 

         


No início da produção, Carpenter convidara Kurt Russell para o ajudar a desenvolver algumas ideias próprias. Russell, amigo de longa e com quem o realizador já trabalhara em dois filmes, “Elvis – The Movie” (1979) e “Nova York, 1997” (1981), aceitou o pedido. Ainda na fase de pré-produção, Carpenter acabou por aproveitar algumas das suas ideias e convidou o actor a fazer o papel de R.J.MacReady, que achava ser perfeito para ele. Kurt Russell foi o último nome a ser escolhido e integrado no elenco.
            
O realizador John Carpenter

Carpenter realiza um filme pleno de terror e algum suspense, principalmente a partir do momento em que eles descobrem, horrorizados, que o extraterrestre tem capacidade de se transformar em qualquer ser, seja humano ou animal, desde que se encontre sózinho. O realizador consegue gerir todo filme sem se perder com trivialidades e habilmente introduzir um clima de suspense, claustrofobia e suspeita, com um bom doseamento de sustos, que acaba por envolver os espectadores no filme e levá-los a, tal como as personagens, querer descobrir quem é humano e quem já não o é (o melhor exemplo desta ideia acontece com o personagem de Doc, que, a dada altura, após a descoberta bizarra de um corpo  semi-transformado na base norueguesa, o qual é transportado para a base americana e que ele vai analisar, desaparece de cena (propositadamente? Ou não?) para só reaparecer muito mais tarde no filme e é impossível não nos questionarmos se ainda é humano ou não) e consegue-o com mestria própria. 

            


Porém, nem tudo era perfeito. Um dos grandes defeitos que o realizador vira no argumento era que existiam muitas cenas com diálogos o que, no seu entender, diminuíam o ritmo e retiravam o suspense pretendido, o argumento não enfatizava as personagens, principalmente a de MacReady que o realizador queria salientar. Posteriormente e já na sala de montagem, o realizador e o seu editor, Todd Ramsay, viram-se obrigados a retirar diversas cenas do produto final, cenas essa que incluíam uma perseguição entre um carro da neve e os cães da base norueguesa, algumas imagens de corpos desfeitos já quando a base americana está em estado de sítio e acrescentar algumas que, apesar de não constarem no argumento, Carpenter quis filmar. Percebe-se então aqui que aquelas cenas e diálogos que o realizador quis deixar de fora, não fazem falta nenhuma, apesar de, talvez alguma profundidade nas personagens não fosse má ideia apresentar. Mas o produto final satisfaz e satisfez as suas audiências, tornando o filme num sucesso. Sendo assim, porquê complicar?
            

Último grande filme realizado por John Carpenter, "The Thing" é, desde as primeiras imagens do genérico (com o universo e uma nave a dirigir-se para a terra onde cai vendo-se apenas um pequeno clarão que, de repente, se transforma numa grande luz onde se apresenta  o título do filme, uma das imagens de marca do realizador),  até ao "must" que é o final, talvez um dos melhores finais de um filme do realizador (excepção feita a “Halloween”): na base americana completamente destruída  e com a tempestade de gelo  que se abateu sobre o local, MacReady e Childs únicos sobreviventes da base conversam acerca do que aconteceu (perdura sempre a dúvida se algum deles está ou não infectado pela coisa). Childs diz ter-se perdido na tempestade enquanto procurava Doc Blair. MacReady, ri-se e abre uma garrafa de whiskey que partilha com o companheiro e enquanto constatam qual será o seu futuro, Childs, a dado momento, pergunta o que pretendem fazer. MacReady responde, laconicamente, aceitando qualquer que seja o seu destino (mantenho o original pelo impacto que cria na cena) “Why don’t we wait here a little while long and see what happens?” e a cena fecha com o tenebroso tema musical de “The Thing” da autoria do grande maestro das bandas sonoras, Ennio Morricone, digno do seu realizador que nunca mais iria conhecer o sucesso que obtivera até então devido aos sucessivos fracassos de bilheteira que viria a obter. Sómente no final da década de 80 com os filmes “Prince of Darkness – Princípe das Trevas” (1987) e “They Live – Eles Vivem” (1988), John Carpenter recuperaria alguma da sua forma de trabalhar e viria a obter sucesso junto do público e crítica também.

 

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Call Girl - Um filme maduro!

                         


 

            António-Pedro Vasconcelos é um daqueles casos no chamado cinema português onde a palavra mau ou malfeito não consta. Parece quase certo que desde a já quase distante década de 80 do século XX, quando começou a sua afirmação, que o realizador teima em deixar a sua marca bem patente na cinematografia nacional. Primeiro com “Oxalá” de 1980, seguindo-se “O Lugar do Morto” de 1984, a sua obra-prima; na década de 90, depois de uma quase travessia no deserto, por falta de apoios, regressa com “Jaime” em 1999; nos anos 2000, “os Imortais” de 2003 faz a diferença quando o cinema português procurava afirmar-se no panorama internacional. "Call Girl", de 2007 é mais um exemplo dessa vontade.

         


Quando começou a escrever o argumento do filme, o realizador só tinha em mente uma actriz, Soraia Chaves e, se analisarmos bem a história, percebe-se o porquê desta vontade de Pedro Vasconcelos: a câmara gosta da actriz e, quase que se pode dizer, persegue-a ao longo de todo o filme lançando o espectador num voyeurismo inevitável a fazer lembrar a câmara obsessiva de Stanley Kubrick em “Lolita” (1962), na relação entre Humbert Humbert (James Mason) e Lolita (Sue Lyon); ou a odisseia nocturna de Bill Hartford (Tom Cruise)  em “Eyes Wide Shut – De Olhos bem Fechados”(1999).       

          
Soraia Chaves é Maria, uma prostituta de luxo, contratada por Mouros para se envolver com Carlos Meireles, o Autarca de Vilanova, uma vila Alentejana, para facilitar a aquisição de uns terrenos em benefício de uma Multinacional que pretende construir um resort de luxo no local. Entretanto, dois polícias, Madeira e Neves, descobrem indícios de corrupção na compra dos terrenos e iniciam uma investigação. Tudo se complica quando Madeira descobre que Maria, que foi sua namorada, também está envolvida no caso.

            Narrativa policial, com alguns laivos de erotismo à mistura, o filme procura centrar-se no trio de actores principais e nas suas personagens e fazê-las descobrir todos os seus conflictos interiores, que também se propagam aos secundários, nomeadamente a Madeira (Ivo Canelas, excelente!), que, a dado momento, está em luta consigo porque, por um lado é um agente da lei e tem de ser imparcial na sua investigação, por outro, não esqueceu Maria completamente. Há também um pouco  de “O Lugar do Morto” em “Call Girl”, não só no ritmo policial que percorre a obra, mas no que toca á presença da “femme fatale”, que atrai o homem errado para o seu destino. 

        


Toda a história é percorrida por constantes interesses económicos, desde a prostituta de luxo , passando pela empresa interessada no projecto turístico, até ao intermediário que contrata a prostituta. Tudo e todos se vendem por um preço, (até Madeira, o agente da polícia e antiga paixão de Maria, está disposto a pagar o preço, usando-a,  para acabar com a teia de corrupção que já sabe que existe), é um exercício de poder exercido até as últimas consequências que serão inevitáveis para os seus protagonistas, é uma constante luta entre os poderes físicos, financeiros e políticos, sendo que o último é o que se mostra mais frágil perante os outros dois, muito bem demonstrado na cena em que Meireles, cede, meio enlouquecido, perante os encantos de Maria, deixando-se enredear numa espiral de esquemas sem regresso.

 O próprio título do filme revela a essência do seu todo, ou seja uma espécie de símbolo indicador das actividades e também das atitudes a que todas as personagens dão corpo e alma. É de Maria a frase que resume tudo isto quando diz, a dado momento,  que “prefere ser infeliz  num Audi do que no banco de um autocarro”. “Call Girl” é um filme, para além daquilo que já disse atrás, de conflictos sociais e pessoais e da maneira como as suas personagens os vivem, e em  que o fascínio por uma mulher contratada para fazer um trabalho, exerce sobre um homem que tem tudo a perder e que, afinal, acaba mesmo por perder tudo.  .   
          


A história é banal, sim, mas também é um trabalho cirúrgico de grande porte, sem falsas modéstias, pondo a nu fragilidades humanas, retratos de uma sociedade em decadência, perfeitamente ilustrado por um elenco todo ele bem escolhido, começando na sensual e bonita Soraia Chaves, passando por Ivo Canelas, Joaquim de Almeida, José Raposo, José Eduardo, pelos  secundários Maria João Abreu, Custódia Gallego, Ana Padrão, entre outros  e não esquecendo  o fabuloso Nicolau Breyner sobre quem, juntamente com Soraia Chaves, recai a responsabilidade de levar o filme a bom porto, principalmente no seu jogo de sedução e na teia de corrupção, sexo e dinheiro que envolve o segundo,  torna a história interessante e faz-nos esquecer a banalidade e uma ou outra falta de solidez no argumento.

        


A interpretação de Soraia Chaves é intensa na abordagem que faz ao papel, muito convincentemente facilitado pela beleza e sensualidade que emana da actriz e que já havia dado nas vistas no filme “O Crime do Padre Amaro”, em 2005, onde interpretara a jovem Amélia, que dá a volta á cabeça de  Amaro;  Nicolau Breyner é Carlos Meireles, o autarca de Vilanova e que é  o alvo das atenções especiais de Maria. A sua interpretação é das melhores que alguma vez o vimos fazer em cinema e, tal como Soraia Chaves, consegue agarrar o papel e dar-lhe o seu cunho pessoal, aliás, a que veterano actor sempre nos habituou. Nas cenas entre os dois actores existe uma química perfeita,  são extremamente realistas, Maria faz o quer do seu alvo, é sempre ela que está no controle de todas as acções que acontecem entre ambos e tudo isso é-nos mostrado em magnificas cenas perfeitamente filmadas e montadas com uma elegância poucas vezes vistas em produções nacionais. 
            

A realização de António-Pedro Vasconcelos é sóbria, madura, não cai em lugares-comuns, apesar das muitas referências cinematográficas que lhe encontramos. Basta olhar para a sua obra desde o curioso “Oxalá” (1980) até “Jaime” (1999), ou “Os Imortais” (2003), passando pela sua obra-prima “O Lugar do Morto” (1984), talvez o melhor filme português dos últimos 50 anos, e pelo premiadíssimo “Os Gatos não têm Vertigens” (2014), para se verificar que é um realizador com obra feita, que sabe filmar e contar uma história.

Filme-sensação de 2007, teve o condão de trazer os espectadores portugueses novamente ás salas e, principalmente,  até ao cinema nacional, e foi vencedor de 3 Globos de Ouro SIC Portugal/Caras para Melhor Filme, Melhor Actriz e Melhor Actor.  

       


“Call Girl” é um filme realista, um bom exemplo de que em Portugal também se sabem contar histórias destas. O seu sucesso junto do público é exemplo disso. Grande demais para a visão curta dos portugueses, mas destinado a grandes voos fora de fronteiras.
a não perder!

 

 

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Uma Viagem pelo Cinema Português IV - Os anos 2000 – Portugal sem Fronteiras

                              

 

            


Depois de o cinema português do século XX ter terminado com um sinal mais, principalmente após os filmes que fecham os dois últimos anos do século, “Zona J” (1998), “Sapatos Pretos” (1998) e “Jaime” (1999) de António-Pedro Vasconcelos, independentemente de serem incursões em zonas marginais, rurais ou no norte do país, terem reconciliado o público com as salas de cinema, era com alguma expectativa que se aguardava a chegada do novo século e o que traria para a Sétima Arte nacional.

            


Os primeiros anos do novo século são ainda dominados, tal como a última década do anterior,  pela prevalência de algum cinema de autor, mas também pelo surgimento de novos nomes na realização dispostos a mudar as coisas: Manoel de Oliveira, mantém, na frescura dos seus noventa anos, o ritmo de um filme por ano; João César Monteiro, após a “Trilogia de Deus” sobre o  seu alter-ego, João de Deus, choca os meios artísticos e intelectuais do país com “Branca de Neve” (2000) que deixa sem imagem, alegadamente por ter tido uma discussão séria com o produtor do filme, Paulo Branco, que não concordava com o rumo que a rodagem tinha tomado. Quando questionado sobre essa sua decisão e que repercussões teria nos espectadores, respondeu laconicamente “o público que se lixe!”. Mesmo assim, o filme obteve um inesperado sucesso. 

José Álvaro Morais com o seu “Quaresma” (2003), um retrato social de um certo Portugal interior ainda desconhecido para muitos, consegue um facto quase inédito ao estar presente em competição na Quinzena dos Realizadores no Festival de Cannes. Também António-Pedro Vasconcelos confirma o seu estatuto de autor, apesar de querer demarcar-se do género, com “Os Imortais” (2003), rodeando-se de um elenco de excepção onde pontua o nosso mais internacional actor, Joaquim de Almeida, ao lado de Joaquim Nicolau, Rogério Samora, Rui Unas, Filipe Duarte, Emmanuelle Seigner e o enorme Nicolau Breyner, conta a história de um grupo de ex-comandos de uma unidade especial da Guerra Colonial  que todos os anos comemoram os feitos da guerra e desta vez querem fazer algo diferente. Grande sucesso de bilheteira dentro e fora de portas.

           


 Mas o novo século também trouxe novos nomes para o cinema português: desde logo João Pedro Rodrigues estreia-se na realização com “Fantasma” (2000), onde aborda questões relacionadas com a obsessão e algum fetichismo com a homossexualidade masculina no Portugal do século XXI através da história de Sérgio, cantoneiro em Lisboa. O filme, algo ignorado em Portugal, ganhou alguma projecção depois da sua exibição em diversos festivais internacionais onde inclusive, competiu e acabou por se tornar um filme culto. Também Cláudia Tomaz consegue com o seu filme de estreia, “Noites” (2000) abordar com seriedade o tema da marginalidade e da toxicodependência e ganhar o Prémio de Melhor Filme da Semana da Crítica no Festival de Veneza.

            


As produções nacionais começam a marcar o seu espaço e a ser presença habitual na europa do cinema: Fernando Vendrell com o seu filme “O Gotejar da Luz” (2001) cuja acção decorre em Moçambique na década de 50, é exibido no Festival de Berlim e em outros festivais internacionais onde obtém algum sucesso; Também Joaquim Sapinho se vai apresentar em 2003 com “A Mulher Polícia” no Festival de Berlim. A história de uma mãe e do seu filho do interior do país e que se veem obrigados a fugir para Lisboa para não serem separados por coisas que o filho fez. O filme cativou a crítica e o publico, além de Berlim, andou por diversos festivais internacionais onde venceu alguns prémios. Mas, apesar das boas graças a que o cinema nacional se vai apegando, o público é escasso: “A Selva” de Leonel Vieira (2002), co-produção luso-hispano-brasileira, baseada no romance de Ferreira de Castro, fica aquém do esperado, apesar do elenco que conta com nomes como Diogo Morgado, Maitê Proença, Ruy de Carvalho, Gracindo Junior, entre outros; “O Delfim” de Fernando Lopes (2002), baseado no romance de José Cardoso Pires, com Alexandra Lencastre e Rogério Samora, é practicamente ignorado pelo público; “O Fascínio” de José Fonseca e Costa (2003), foi directamente editado em DVD; também o polémico João César Monteiro viu o seu “Vai e Vem” (2003) passar a correr pelas salas de cinema. 

A televisão invade o cinema, o público queria agora era enredos televisivos onde, além de vedetas de televisão, das histórias cor-de-rosa, ao estilo telenovela, intrigas com mil e um “fait-divers que de preferência implicavam figuras públicas envolvidas com jovens de elevados atributos físicos e cenas de sexo explícito. A aposta, se bem que arriscada, revelou-se acertada e os filmes produzidos foram sucessos de bilheteira.


Esta nova tendência começou logo em 2005 com “O Crime do Padre Amaro” de Carlos Coelho da Silva, conta a história do Padre Amaro, saído do seminário, vem substituir um padre falecido e acaba por se envolver com a jovem Amélia, sem pensar nas consequências que daí possam advir. Adaptação da obra literária de Eça de Queirós com a acção da cidade de Leiria do século XIX transposta para a actualidade num bairro social de Lisboa. Jorge Corrula e Soraia Chaves encabeçam o elenco onde também constam Nicolau Breyner, Ana Bustorff, Cláudia Semedo, Rui Unas e Diogo Morgado, entre outros. O filme, feito com o apoio da SIC, foi depois exibido no canal privado, como série, contendo cenas inéditas.

     


Também “Corrupção” de João Botelho (2007), inspirado no livro “Eu Carolina” de Carolina Salgado, ex-namorado de Pinto da Costa, presidente do FC Porto, onde revela alguns casos escaldantes protagonizados por si e por Pinto da Costa. No filme, Margarida Vila nova é a protagonista Sofia e Nicolau Breyner é o presidente de um clube de futebol que se deixa corromper numa tentativa de fazer com que o seu clube vença o campeonato. Outro caso foi “Call Girl” de António-Pedro Vasconcelos (2007) inicialmente envereda pelo mesmo caminho do filme de Botelho, mas muda o rumo a meio e o filme torna-se mais interessante. A história é a de Maria, uma “Call Girl” de luxo (interpretada pela sensualíssima Soraia Chaves), contratada por Mouros (Joaquim de Almeida, o eterno vilão), para seduzir um presidente de câmara de nome Meireles (interpretação a cargo de Nicolau Breyner com a excelência habitual do actor) para que este autorize a construção de um empreendimento turístico de luxo em terrenos da sua cidade. Ao mesmo tempo, dois inspectores da polícia começam a investigar indícios de corrução em Meireles; “Second Life” de Miguel Gaudêncio e Alexandre Cebrian Valente (2009) conta a história de Nicholas, um jovem rico que na noite em que comemora os seus 40 anos juntamente com amigos, aparece morto na sua piscina e enquanto se investiga a sua morte, descobre-se também os muitos vícios, paixões, ambições e traições de cada personagem que se encontrava  na festa, ao mesmo tempo é-nos mostrada como seria a sua vida se ele em vez de vir para Portugal, tivesse ficado no estrangeiro. 

O filme protagonizado por uma constelação de vedetas como Lúcia Moniz, Cláudia Vieira, Nicolau Breyner, Paulo Pires, Pedro Lima, Sofia Grilo, Ricardo Pereira, entre outros, foi o maior sucesso de bilheteira desta primeira década do novo século. O filme era para ter sido realizado por Nicolau Breyner que, por divergências criativas com o Produtor Alexandre Cebrian Valente, abandonou a realização, mas manteve a sua participação no filme que acabou por ser co-realizado pelo produtor e pelo argumentista Miguel Gaudêncio.

            


No ano em que comemora o seu centenário, 2008, Manoel de Oliveira, é homenageado com um segundo Leão de Ouro no Festival de Veneza e mantém a sua actividade cinematográfica. Além da fórmula televisiva que continuava a resultar com o “Filme da Treta” de José Sacramento (2006), adaptado de um formato “sketch” televisivo, inspirado numa peça teatral de televisão em que António Feio e José Pedro Gomes, respectivamente Toni e Zézé, habitantes de um bairro degradado em Lisboa, comentam o dia-a-dia de uma forma humorística, tão bem souberam interpretar. Foi um enorme sucesso de bilheteira, assim como a sua sequela (já sem António Feio), “Filho da Treta” (2016) de Helder Mendes.  Sopram ventos de mudança no panorama cinematográfico português que se encontrava numa encruzilhada: O Ministério da Cultura cria o Fundo de Investimento para o Cinema e Audiovisual que é sustentado por si, pela RTP, SIC e TVI e também pela ZON, distribuidora de programação por cabo, controlada pela Lusomundo, na altura, o maior distribuidor de filmes em Portugal. Além de alguns filmes de índole comercial e pouco interessantes em termos de qualidade, como “98 Octanas”(2006) de Fernando Lopes, uma espécie de “road movie” à portuguesa;  “Viúva Rica Solteira não Fica” (2006) de José Fonseca e Costa, uma co-produção luso-brasileira e uma tentativa de fazer uma comédia romântica de época; ou ainda a “Arte de Roubar” (2008) de Leonel Vieira, co-produção portuguesa, brasileira e espanhola de acção, comédia e crime que convenceu muito pouca gente;  outros há que, apesar de serem realizador por independentes, levam a produção nacional além fronteiras: “Alice” (2005) de Marco Morais em que um pai procura a sua filha desaparecida numa Lisboa ameaçadora, esteve em Cannes na secção de Primeiras Obras; também em “Odete” (2005) de João Paulo Rodrigues, Lisboa é palco da morte de um jovem de sexualidade ambígua, enquanto Odete, uma jovem empregada de hipermercado sonha em engravidar do seu namorado. Quando este foge, ela, sozinha, fecha-se num mundo de ilusões e mantém a sua obsessão de ter um filho. O filme, presente em Cannes, ganhou uma menção especial em “Cinémas de Recherche”.

A partir de 2010, ao se entrar na segunda década do século XXI, depois duma travessia do deserto pontuada por alguma irregularidade na produção cinematográfica nacional, esta parece querer alinhar-se com o resto da Europa e, quem sabe, até marcar pontos em termos de qualidade.

            


Aos 102 anos de idade (!), Manoel de Oliveira concretiza finalmente um velho sonho de mais de cinquenta anos com “O Estranho Caso de Angélica” (2010), onde um jovem fotógrafo é chamado a casa duma família abastada do norte para tirar um último retrato de Angélica, uma jovem que morreu logo após o seu casamento, e no momento em que tira a fotografia, a jovem parece ganhar vida, pisca-lhe o olho e sorri. O fotógrafo fica obcecado com a sua beleza e aquele momento surreal e quer saber mais sobre Angélica. O filme obtém apenas um modesto sucesso nas salas. Ao contrário, “A Bela e o Paparazzo” (2010), de António-Pedro Vasconcelos obtém um enorme sucesso. A comédia romântica que conta a história de Mariana, uma actriz de telenovelas de sucesso que está perto de um colapso nervoso porque as filmagens não estão a correr bem, ao mesmo tempo que é constantemente perseguida pelos paparazzi, principalmente Gabriela Santos que ela nunca consegue saber quem é. No elenco, novamente Soraia Chaves mais sexy que nunca, acompanhada por Marco d’Almeida, Pedro Laginha, Virgílio Castelo, Ivo Canelas, Nicolau Breyner, entre outros. 

Em 2012, fruto de uma feliz co-produção entre o ICA, da RTP Rádio e da Alfama Films com a colaboração da Câmara Municipal de Lisboa, nasce a “Operação Outono” um thriller político realizado por Bruno de Almeida que conta a história do assassinato do General Humberto Delgado ocorrido em fevereiro de 1965, em Espanha, pela mão da PIDE a mando de Salazar. O filme, baseado em factos verídicos narrados na biografia de Delgado “Humberto Delgado, o General sem Medo” escrita pelo neto Frederico Delgado Rosa. O filme, com um elenco nacional e internacional com nomes como John Ventimiglia, Nuno Lopes, Diogo Dória, Ana Padrão, Carlos Santos, Camané, entre outros, foi estreado em algumas salas do país, de norte a sul, e obteve apenas um modesto sucesso de bilheteira mas que não desencorajou o cinema nacional de partir à conquista da Europa e do mundo. 

Em 2011 é criada a Academia Portuguesa das Artes e Ciências Cinematográficas ou simplesmente Academia Portuguesa do Cinema, cuja missão é apoiar e divulgar o cinema português, não só em Portugal, como também no estrangeiro.

            


Em 2012, a Academia Portuguesa de Cinema instituí o prémio Sophia, nome escolhido para homenagear a maior poetisa portuguesa de sempre, Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), que, à semelhança de outros galardões um pouco por toda a europa como o “César” em França, o “Goya” em Espanha ou o “Bafta” no Reino Unido, todos inspirados naquele que é o maior prémio de cinema do mundo, o “Oscar” americano, premeia a excelência cinematográfica nacional. Nas várias cerimónias já decorridas foram premiadas obras como “Tabu” (2012) de Miguel Gomes, “Os Gatos não Têm Vertigens” (2014) de António-Pedro Vasconcelos, “Cartas de Guerra” (2017) de Ivo M. Ferreira, “A Herdade” (2019) de Tiago Guedes ou “Listen” (2020) de Ana Rocha de Sousa, que inclusivamente esteve perto de chegar à nomeação para o Oscar de Melhor Filme Internacional.


        

O facto de nos últimos anos, o cinema português ter estado na mó de cima com grande representação internacional, não o isenta de ter andado a perder tempo com “remakes” dos clássicos da era de ouro da comédia portuguesa, como foram os casos de “O Pátio das Cantigas” (2015) de Leonel Vieira, que, apesar de querer actualizar a história de um simples bairro lisboeta por altura dos Santos Populares, convenhamos que, por muito boa vontade que se tenha, César Mourão não é nem de perto nem de longe Vasco Santana e Miguel Guilherme, apesar da sua excelente prestação muito próxima da de António Silva, ainda está alguns níveis abaixo do original; foi também o caso de “O Leão da Estrela” (2015) de Leonel Vieira que, embora um pouco melhor que o “o Pátio das Cantigas”, sofre do mesmo problema,  só actualizar a história não chega, é preciso ter graça, a graça que o original tinha e, apesar do esforço de todo o elenco, o filme não descola da mediania; aconteceu exactamente o mesmo com “A Canção de Lisboa” (2016) de Pedro Varela que, sabendo-se de antemão ser o original de 1933 uma das comédias mais amadas do cinema nacional, teria que ser feito um trabalho acima da média, nomeadamente para os papéis principais de Vasco Santana e Beatriz Costa e António Silva, o que não aconteceu porque a escolha recaiu sobre novamente em César Mourão (que não consegue, uma vez mais, chegar aos calcanhares de Santana), Luana Martau (para mim, uma desconhecida) e Miguel Guilherme que “volta a vestir a pele” de António Silva e com a qual quase consegue levar o filme ás costas. Os três “remakes” ficaram aquém do esperado em termos de bilheteira; já “O Pai Tirano” (2022), realizado por João Gomes, com um elenco recheado de estrelas, como José Raposo, Miguel Raposo, Carolina Loureiro, Jessica Athayde, Diogo Amaral, Diogo Valsassina, entre outros, mantém intacto o enredo dos anos 40 idealizado e escrito por António Lopes Ribeiro, mas passou despercebido pelas salas de cinema. É caso para se perguntar se havia mesmo necessidade de se fazer estes “remakes”? eu acho que não!

            Mas, apesar dos muitos problemas, financeiros e outros, por que passou o cinema nacional ao longo destes mais de 100 anos de existência, soube sempre dar a volta e adaptar-se aos novos e desafiantes tempos que lhe foram surgindo e cada vez mais a qualidade do produto nacional é respeitada. Finalmente estamos a ser conhecidos internacionalmente, não só com presenças assíduas em festivais e outros certames por esse mundo fora, mas também são cada vez mais as produções estrangeiras que escolhem vir produzir filmes e séries em Portugal, usando para esse efeito muita mão-de-obra nacional e que acabam por promover o cinema nacional além-fronteiras.   

              

domingo, 12 de março de 2023

O REGRESSO DOS HERÓIS

   

            


Neste blog, sempre que escrevo sobre qualquer filme cuja acção se passa na guerra do Vietname, refiro-me sempre aquilo a que chamo “a quinta essência do Vietname”, ou seja, da muita variedade cinematográfica sobre aquela guerra, nomeio sempre os filmes que, na minha opinião, melhor retrataram o conflito. “O Regresso dos Heróis” é mais um desses filmes.   

O Regresso dos Heróis, “Coming Home” no original, foi um projecto concebido por Jane Fonda como sendo o primeiro filme da sua própria produtora, a “IPC Films”, que fundou com Bruce Gilbert, um seu amigo dos tempos em que ela protestava contra a intervenção americana no Vietname. Inspirada pela sua amizade com o veterano Ron Kovic, que conhecera numa manifestação contra o conflito e que acabara de publicar a sua autobiografia “Born on the Fourth of July – Nascido a 4 de Julho” (que anos mais tarde Oliver Stone transformaria num filme com o mesmo título), a actriz queria fazer um filme sobre aquela guerra que trouxera grandes transformações e criara divisões entre a população americana. 

            



Sally Hyde é uma esposa conservadora, casada com Bob Hyde, um Capitão dos Marines que está prestes a embarcar para o Vietname, que vê na sua comissão uma oportunidade de progressão de carreira. Liberta dos seus deveres como esposa e sem nada que fazer em casa e inspirada por uma sua amiga cujo irmão voltou para casa com problemas emocionais depois de ter ido ao Vietname, Sally oferece-se como voluntária para trabalhar num hospital para Veteranos de Guerra onde vai encontrar reencontrar Luke Martin, um antigo colega universitário que, depois de ter ido combater no Vietname, ficou paraplégico. Entre os dois, depois de alguns conflitos, fruto da oposição que Luke faz agora à guerra, nasce uma relação que se vai aprofundando com o tempo e que eventualmente lhes trará inevitáveis consequências quando Bob regressar.

     

Jane Fonda, Produtora e Actriz

Em 1972, Jane Fonda tinha encomendado à sua amiga Nancy Dowd, que escrevesse uma história acerca das consequências da guerra vistas pelos olhos da mulher de um militar. O resultado foi “Buffalo Ghosts”, que se focava em duas mulheres voluntárias num hospital de veteranos que têm de se confrontar com os efeitos que a guerra causa em termos de baixas e nas respectivas famílias. O projecto arrastou-se durante anos até que Bruce Gilbert e Jerome Hellman lhe pegaram. Reuniu-se o provável elenco, que incluía, além de Jane Fonda, Bruce Dern e Jon Voight, para uma primeira leitura do que Nancy Dowd escrevera, a que se juntaram Hal Ashby, Haskell Wexler enquanto Waldo Salt e Robert C. Jones rescreviam o argumento. Unia-os a todos uma forte oposição à Guerra do Vietname e a preocupação com os veteranos que vinham de lá com grandes dificuldades de adaptação à nova vida.

Inicialmente era John Schlesinger, que já havia trabalhado com Hellman e Voight no excepcional “Midnight Cowboy – Cowboy da Meia-Noite” (1969), quem iria dirigir o filme, mas acabou por se retirar do projecto por se sentir desconfortável com o tema. 

Jane Fonda, ligada ao filme desde o início e antes de se fixar no elenco final, queria ter como parceiro um nome que fosse sinónimo de sucesso. Foram sondados actores como Al Pacino, Jack Nicholson, Sylvester Stallone e até mesmo Robert Redford, que, por uma razão ou outra declinaram o convite. Jon Voight, amigo de Fonda, inicialmente era para fazer o papel do marido de Sally, acabou por ficar com o papel do veterano paraplégico. Bruce Dern, amigo de Jon Voight e um actor muito conotado com personagens de carácter sádico, foi escolhido pessoalmente por Fonda para interpretar o papel de Bob. 

Quando tudo estava quase pronto para começar a rodagem, houve problemas com o argumento que teve que ser rescrito inúmeras vezes e Jane Fonda fora entretanto convidada para mais dois filmes que não quis dizer que não por serem veículos para a sua produtora: “Julia – Julia” de Fred Zinnemann (1977) e “Comes a Horseman – Uma Mulher Implacável” de Alan J. Pakula (1978). Finalmente quando já não se podia esperar mais (porque Fonda queria o filme pronto a tempo de fazer carreira nos circuitos comerciais e festivaleiros e para os Oscars), a rodagem começou com Hal Ashby como realizador.

            


 Um dos grandes trunfos de “O Regresso dos Heróis” está na mudança que se opera na personagem de Sally Hyde, interpretada magistralmente por Jane Fonda. No início ela é o exemplo perfeito da esposa cujo marido vai para guerra combater, ela não tem uma opinião própria sobre os assuntos e partilha as opiniões dele; é reservada e envergonhada, mas, a partir do momento em que reencontra Luke, a sua personalidade começa a mudar e ela torna-se muito mais activa social e também sexualmente quando inicia a sua relação com o paraplégico, e activista contra a guerra que no início defendia pela voz do seu marido. 

         


O filme também não se compromete com o tratamento que é dado aos veteranos, embora a sequência inicial, de paraplégicos a viver o seu dia-a-dia, possa, de certa maneira, contradizer esta opinião e se pensar que estamos perante mais um filme de coitadinhos e não sobre um dos maiores traumas da sociedade americana das últimas décadas do século XX e que também, numa certa medida, afecta a sociedade portuguesa e a maneira como ela lidou com a guerra colonial em África. É na maneira como  lida com o trauma dos veteranos que não se conseguem adaptar á sociedade, na maneira como trata o relacionamento entre uma mulher, cujo ideal vai mudando ao longo do filme, e um veterano, cheio de dor, ódio e frustração que se arrasta pelos corredores do hospital primeiro numa maca, depois com muletas e por fim condenado a uma cadeira de rodas para o resto da vida e que sabem que o seu relacionamento terá inevitavelmente que acabar quando o marido dela regressar, que o filme se move intrinsecamente sem nunca resvalar para a lágrima fácil, pelo contrário, para a dura realidade que ainda hoje é parte da nossa herança.

           


 O filme tem altos e baixos,  momentos em que passa por algumas dificuldades nas quais a solução escolhida não é a melhor, mas também consegue soluções satisfatórias, como por exemplo o relacionamento entre as personagens de Luke e Sally que passa por alguns momentos de tenção desde que ele lhe pergunta se ela é daquelas mulheres que só excita com aleijados e percebe-se ao longo do filme que não é o caso como se verá ao longo do filme em que as cenas íntimas do casal são filmadas de um modo directo e é mostrada a enorme afeição que ambos sentem, coisa que acabamos por perceber e até aceitar. Onde o filme começa a resvalar para a mediania é quando Bob regressa, ferido, do Vietname e descobre a traição de sua mulher. As cenas finais mostram alguma incerteza sobre como lidar com aquele tipo de material e nem o trabalho de Ashby consegue solucionar a situação que nos leva ao final quase inevitável.

            

O Realizador Hal Ashby

A realização de Hal Ashby, antigo editor e vencedor de um Oscar nessa categoria pelo filme “No Calor da Noite”, de Norman Jewison, em 1967 e realizador de filmes como “Shampoo” (1975), “Caminho de Glória”(1976) ou “Bem-Vindo Mr. Chance” (1979), não é adequada ao material que tinha em mão que merecia talvez um melhor tratamento se, por acaso, tivesse outro realizador atrás daa câmaras que acompanhasse o desenvolvimento desde o seu início (Ashby acabou por ser uma solução de recurso quando o projecto ficou sem realizador), o resultado teria sido diferente. O filme baseia-se todo no trabalho de um elenco de excepção que, além de fazer justiça ao argumento, consegue levar o filme a bom porto, suportado pela mediana realização de Hal Ashby que, apesar de alguns momentos mais lúcidos onde se pensa que finalmente o filme vai deslumbrar, mas não chega a esse patamar.

O problema de “O Regresso dos Herói”, foi, no meu entender, o facto de ter surgido no mesmo ano de “O Caçador” de Michael Cimino e ter abordado a mesma temática que o segundo que também lidava com o trauma dos que regressavam do Vietname mas focava a sua atenção nos que lá ficavam e, penso que foi aqui que se deu a grande diferença entre ambas as obras e que faz com que este filme seja também um dos meus eleitos sobre o que foi a guerra do Vietname. 

            


Nomeado para oito Oscares da Academia, incluindo Melhor Filme e Melhor Realizador, o “Regresso dos Heróis” ficou-se pela vitória em três das categorias: Melhor Actor para Jon Voight, Melhor Actriz para Jane Fonda e também Melhor Argumento Original. Neste ano o grande vencedor da cerimónia foi o filme de Cimino que arrecadou os prémios de Melhor Filme e Melhor Realizador, além de mais três estatuetas que incluíram a de Melhor Actor Secundário para Christopher Walken.

            O “Regresso dos Heróis” acaba por ser um retrato da sociedade americana preconceituosa e anti-guerra do Vietname dos anos 60 do século XX (retrato que Hal Ashby já nos havia apresentado em “Shampoo”) e também um dos definitivos filmes sobre o conflito mais devastador da sociedade americana. Uma daquelas pequenas obras-primas que o cinema nos ensinou a ver e a descobrir.

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