domingo, 2 de outubro de 2022

HAVERÁ SANGUE – A FEBRE DO OURO NEGRO

    

        


 
Em 1956, George Stevens, um dos grandes produtores e realizadores vindo da época dourada de Hollywood e depois de, juntamente com John Ford, John Huston, Frank Capra e William Wyler ter ido combater e fazer reportagens durante a IIª Guerra Mundial na Europa e no Pacífico, realiza o épico “Giant – O Gigante”, baseado no romance de Edna Faber sobre a história de um criador de gado no Texas e dos seus associados ao longo de várias décadas do século XX. No elenco estavam os nomes de Rock Hudson, Elizabeth Taylor e James Dean. Nomeado para vários Oscares da Academia, “O Gigante” levaria apenas o prémio para Melhor Realizador. O filme ficou sempre marcado por ser a última aparição de James Dean no grande écran. A morte prematura do actor, aos 25 anos de idade vítima um acidente de viação, não lhe permitiu assistir á estreia nem desfrutar do sucesso do filme. Tornou-se num dos grandes clássicos da sétima arte. Em 2007, o filme “Haverá Sangue”, de Paul Thomas Anderson homenageia, de certa maneira, a mesma temática do filme de Stevens. 

            


Em 2001, o jornalista de investigação Eric Schlosser publica o livro “Fast Food Nation” onde denuncia as prácticas pouco higiénicas levadas a cabo pela indústria da chamada “Fast Food” e diz que o seu livro se inspirou directamente no trabalho que o escritor, político e  activista  socialista, Upton Sinclair (1878-1968) publicou em 1906, intitulado “The Jungle” onde denunciava as condições de trabalho e sanitárias da indústria de preparação e distribuição de carne. Schlosser, que pouco conhecia da obra de Sinclair, decidiu aprofundar o seu conhecimento e leu “Oil!”, o romance que o político publicou em 1927. Achou-o profundamente interessante e pensou que daria um bom filme. Procurou os herdeiros de Sinclair e comprou-lhes os direitos de adaptação. Faltava encontrar algum realizador que gostasse da obra tanto quanto ele e a quisesse adaptar para cinema. Depois de alguma procura, nem sempre com resultados positivos, entrou em cena Paul Thomas Anderson. O realizador que andava às voltas com a escrita de um argumento que envolvia duas famílias rivais, mas que não estava a resultar. Um dia, em Londres, encontrou uma cópia de “Oil!” que o atraiu por causa da capa onde se via um campo de petróleo na Califórnia e começou a lê-lo e, à medida que avançava na leitura, mais entusiasmado ia ficando. Soube então que Eric Schlosser tinha os direitos de adaptação e entrou em contacto com ele, que lhe deu luz verde para um primeiro argumento. Anderson escreveu o argumento do filme baseado apenas nas primeiras 200 páginas do livro (que tem 528 páginas) e mudou-lhe o título para “There Will Be Blood” por achar que soaria melhor ao ouvido do que “Oil!”. E teve razão nesta escolha! 

Schlosser, creditado no filme como co-Produtor Executivo, aprovou o argumento e começou a procura do elenco. Paul Thomas Anderson desde sempre mostrou interesse em trabalhar com Daniel Day-Lewis e escreveu o argumento com o actor em mente. Day-Lewis, ao ler o argumento que lhe foi enviado, mostrou interesse em trabalhar com o realizador, já que gostaria do seu filme “Punch-Drunk Love – Embriagado de Amor” (2002), uma comédia com Adam Sandler, Emily Mortimer e Phillip Seymour Hoffman que não tinha sido um grande sucesso de bilheteira. Para Lewis, interpretar Daniel Plainview, personagem complexa e principal do filme, foi mais um desafio que o actor quis superar. 

            


A acção passa-se na viragem do século XIX para o século XX, entre o Novo México e a Califórnia, numa altura em que o negócio do petróleo ainda se encontrava numa fase embrionária com os primeiros prospectores a começar a desbravar caminho. Daniel Plainview é um desses prospectores que durante uma pesquisa encontra prata num terreno e acaba por adquirir licença para o explorar. Com um faro especial para descobrir e adquirir terrenos, quase a custo zero, onde o ouro negro existe, Plainview cria a sua própria empresa de perfuração e dá início ao seu império petrolífero. A sua ambição é desmedida e a ganância mais que muita, o que lhe trará inevitáveis consequências.

Raramente, o princípio dos filmes contém imagens que são quase mais poderosas que o próprio filme. "Haverá Sangue" tem essa vantagem. Os primeiros dez minutos de filme, em que se vê uma personagem de nome (viremos a sabê-lo mais tarde) Daniel Plainview a trabalhar num buraco pouco mais largo que ele, onde sofre um acidente que lhe parte uma perna e tudo aquilo que se segue, são extremamente poderosos e, de certa maneira, marcam todo o filme daí para a frente. 

        


O confronto entre Daniel Plainview e Eli Sunday nasce cedo no filme mas vai durar uma vida inteira. Eli é um padre evangelista cujo único objectivo é tirar dinheiro a Plainview para puder construir a sua igreja: Daniel, a princípio, alinha com ele e ajuda-o prometendo-lhe até a bênção do primeiro poço de petróleo construído nas terras circundantes da propriedade dos Sunday. Mas quando a altura chega, Plainview proíbe-o e ignora completamente as pretensões do outro humilhando-o perante toda a comunidade. O que se segue são imagens verdadeiramente poderosas e magnificamente criadas pelo director de fotografia Robert Elswit (vencedor do Oscar na respectiva categoria) e pelo director de produção Jack Fisk em que vemos os primeiros poços substituídos por vastos campos de petróleo supervisionados por Plainview sentado no alpendre da sua casa, a beber whiskey atrás de whiskey enquanto diversos acidentes acontecem onde morrem homens, o seu filho adoptivo fica surdo em consequência da explosão dum poço levando a uma maior distanciamento entre ambos já que Daniel apenas precisa dele como um adereço e não como um agregador de simpatia.

           



 As temáticas que “Haverá Sangue” explora: ambição, ganância, engano e ilusão são a razão que opõe Daniel Plainview  e Eli Sunday numa luta de proporções épicas: enquanto Daniel quer a riqueza material, prata e petróleo, engana os proprietários das terras onde sabe haver petróleo, que lhas vendem por preços muito abaixo do seu valor real; Eli pretende ser um líder, um agregador de vontades, um profeta cheio de um puritanismo irredutível que ousa enfrentar o diabo em encenações perfeitamente estudadas; Daniel constrói a sua empresa de perfuração, Eli cria a Congregação da Terceira Revelação. Ambos são enganadores, criadores de ilusões, um engana com a promessa de dinheiro, o outro engana com a salvação; Daniel ilude-se ao pensar que algum dia poderá ser um verdadeiro pai para o seu filho adoptivo, H.W.Plainview; quanto a Eli, assume uma auto-grandeza que não existe e, vítima da sua própria ganância, acaba por negar a sua pregação. O encontro final entre os dois, numa cena extraordinária, quer a nível interpretativo quer a nível técnico, tem um tom quase biblíco: Daniel é o milionário que sempre quis ser, só e alcoólico (trazendo-nos á memória Charles Foster Kane de Orson Welles em “Citizen Kane – O Mundo a Seus Pés”), Eli é um evangelista da rádio, educador de almas, mas, também ele, cheio de vícios e dívidas. De humilhação em humilhação, alma corrompida contra alma corrompida, o desfecho acaba por ser o esperado…ou talvez não?

        

O Realizador P.T.Anderson com Day-Lewis

Realizado por Paul Thomas Anderson, que já nos havia dado o "softcore" "Boogie Nights Jogos de Prazer"(1997), que revitalizou a carreira de Burt Reynolds, ou o intrigante "Magnolia" (2001), com Tom Cruise, Julianne Moore, Jason Robards e Philip Seymour Hoffman, "Haverá Sangue" tem um toque de filme épico mas o realizador não chega a entrar no género. Produção cuidada, com uma especial atenção ao pormenor principalmente ao detalhe da época. Aliás, Paul Thomas Anderson, disse que o seu filme era como um familiar, embora distante de "O Gigante"(George Stevens, 1956) que, de uma forma muito mais épica, tratou o mesmo tema.
           


 Indiscutivelmente o filme pertence todo a Daniel Day-Lewis que, em apenas duas cenas extraordinárias, merecidamente venceu o Oscar de Melhor Actor do Ano, e ambas  na segunda parte do filme: a já referida cena final e, mais concretamente, na sequência da conversão e arrependimento de Daniel Plainview em que este, humilhado pelo reverendo Eli (numa espécie de vingança pela humilhação sofrida inicialmente), é coagido a confessar ter abandonado o seu filho, que o actor ganha o filme por completo e, por acréscimo, a estatueta; simplesmente brilhante e inesquecível. Também Paul Dano no duplo papel de Paul Sunday e do reverendo Eli Sunday, o verdadeiro opositor de Plainview e responsável por alguns dos fracassos de Plainview, durante todo o filme e responsável pela sua conversão, contribui para que o filme seja uma experiência quase brutal. 

“Haverá Sangue” é um filme sobre muitas coisas já referidas atrás, mas é principalmente sobre um país em transição, já que a acção começa em finais do século XIX e atravessa parte do século XX, tal como “O Gigante” de Stevens o fizera em 1956. O filme de Paul Thomas Anderson oscila permanentemente entre dois estados: areia e poeira, nada sobre nada, cujos limites são onde nada há e onde tudo pode vir a ser. A forma desse vir a ser é viscosa, líquida e negra, é um solo de óleo e um mal da alma. É também um filme sobre a procura permanente de riqueza, o de querer mais e mais sem olhar a meios para a obter. 

No final parece não haver lugar para mais nada que seja digno de referência, a não ser o facto de que Daniel, agora um milionário famoso, passou duma obsessão pelo petróleo à possessão do mesmo a um estado de loucura total em que deserda o seu filho ao saber que este quer dissolver a sua parceria com o pai, além de gozar com a sua deficiência e revelar o segredo da sua existência, e que, tal como Kane de “O Mundo a Seus Pés” na sua Xanadu, vagueia pela sua mansão como um fantasma, só e abandonado por todos.

            O filme dividiu a crítica e conseguiu um sucesso junto do público e oito nomeações para os Oscares, incluindo nas categorias principais de Melhor Filme, Melhor Realizador e Melhor Actor, além de inúmeros outros prémios nacionais e internacionais. Desde que estreou, em 2007, tem vindo a ser  considerado um dos grandes clássicos do cinema do século XXI.

 

 

segunda-feira, 13 de junho de 2022

James Bond 007 – Ao Serviço do Cinema IV

                                                                                                                                             4 – O Legado (2015-2021)              

 

            


O sucesso de “Skyfall”, vigésimo-terceiro filme da mais longa e famosa saga (apenas superada por “Star Wars”, a “Space-Opera” imaginada por George Lucas nos anos 70) do cinema, foi, de certa maneira, decisiva para a continuação da série. “Skyfall”, tornou-se o mais rentável filme da série James Bond ao ultrapassar um bilião de dólares em receitas mundiais ( e ser “apenas” o décimo-quarto filme a consegui-lo) e ser o único filme da série a atingir tal feito, como também foi o primeiro a vencer dois Oscares da Academia numa cerimónia só (Melhor Canção e Melhor Som, empatado com “Zero Dark Thirty - 00.30 – A Hora Negra” de Kathryn Bigelow). Com tal sucesso, Daniel Craig, depois de ter dito várias vezes que aquele seria o seu último James Bond, deu o dito por não dito e assinou novo contrato para mais dois filmes do agente secreto. Estava salvaguardada a continuidade da série e restava começar a pré-produção do novo filme. Seriam três anos de espera até a nova produção ver a luz do dia.

Inicialmente, Sam Mendes, o realizador de “Skyfall”, tinha dito a Barbara Broccoli e a Michael G.Wilson, produtores do filme que não queria voltar para dirigir o novo Bond, mas, posteriormente e depois de ter lido o argumento do filme, achou-o apelativo e aceitou voltar a embarcar no universo bondiano. Pelo meio, os produtores, face ao facto de se encontrarem sem realizador, contactaram Nicholas Winding Refn, o realizador de “Drive – Risco Duplo” (2011), que rejeitou o convite. Novamente com Mendes a bordo, o elenco e com quase toda a equipa que transitou do filme anterior reunida, o “Bond 24” (como era conhecido) estava pronto a avançar.

           
 Desta vez 007, depois de receber uma misteriosa mensagem póstuma da anterior “M”, que o leva a uma arriscada missão na Cidade do México, da qual resulta uma suspensão imediata do agente secreto, mas que, posteriormente, o põe no rasto da misteriosa organização criminosa “Spectre” e do seu enigmático líder Ernst Stavro Blofeld, que pretende lançar uma rede nacional de vigilância para monitorar as actividades criminais no mundo inteiro. A investigação de Bond vai adquirir um carácter pessoal quando alguém do seu passado surge no caminho.
O Elenco de "Spectre"

No elenco, além de Daniel Craig, regressam também Naomie Harris como Eve Moneypenny, a agente de campo temporariamente retirada dessa função;  Ben Whishaw como “Q”, o “nerd” do MI6 (responsável pelo cómico de “Spectre quando nas novas instalações do MI6 mostra o novo “Aston Martin DB10” e  Bond detém-se junto do que resta do seu velho “DB5”, “Q” mostra-lhe o volante e diz “I told you to bring all pieces, not one piece!”, qualquer coisa como “eu disse-lhe para o trazer inteiro e
não uma peça!“
e depois ri de nervosismo como se aquilo que acabara de dizer fosse ofensivo para 007); Ralph Fiennes como Mallory, o novo “M”, Rory Kinnear no papel de Bill Tanner, (o secretário da antiga “M”), a que se juntam Christoph Waltz como Blofeld, Léa Seidoux como Madeleine Swann, Monica Bellucci como Lucia Sciarra, Dave Bautista como Mr. Hinx, entre outos. 


“Spectre” leva-nos numa viagem ao mais negro mundo de Bond. Não só nos traz novamente Mr.White, a personagem sinistra que nos assombra desde “Casino Royale” (aqui conhecemos outra faceta dele, mais humana, coisa que ninguém diria!), como nos transporta até ao tempo da guerra fria e de “Spectre”, a organização criminosa que que surge desde o primeiro filme da série e o seu líder, Ernst Stavro Blofeld, que tem sido sempre a maior nemesis de James Bond e fica-se com a sensação de que “já vi este filme em qualquer lado” (no tempo de Bond de “Sir” Sean Connery, ainda existia a guerra fria que dava continuidade às acções da Spectre que estava sempre metida ao barulho), mas a conjunctura mudou e, como já foi dito, a guerra fria terminou e, como tal, pensou-se que a organização criminosa também se havia extinguido...engano! ela continua activa e muito mais perigosa do que antes e isso percebe-se quando surge Franz Obenhauser (uma das melhores prestações de Chistoph Waltz), também conhecido como Ernst Stavro Blofeld. Franz é uma figura do passado de Bond e é aqui que “Spectre” ganha consistência, afasta-se dos outros filmes da série e mergulha no passado de Bond (que já havia sido referido em “Skyfall”), assumindo aqui uma faceta mais negra do que aquilo que nos fora dado a conhecer ao longo dos 22 filmes anteriores. De repente, aquilo que parecia ser mais um filme de James Bond torna-se algo mais do que mais uma aventura do agente secreto mais famoso do mundo. Assume-se como um quase ajuste de contas com o passado e, à semelhança do que acontecera com Bond em “License to Kill – Licença para Matar”, é uma vingança pessoal, que pode, ou não, ter um preço demasiado alto para pagar.  

            


Depois de uma sequência pré-genérico filmada com a qualidade e a acção habituais num filme de James Bond, somos presenteados com um dos mais bonitos e mais bem conseguidos genéricos da série, acompanhado por um bom tema musical, mas longe dos grandes temas que caracterizaram a série,“Writing’s on the Wall” co-escrito por Sam Smith e Jimmy Napes e interpretado por Smith e que acabou por ganhar, não só o Globo de Ouro, como também o Oscar de Melhor Canção, o filme leva-nos por vários e tortuosos caminhos, a diversos locais (outro dos pontos altos da série) principalmente quando Bond se encontra pela terceira  vez com Blofeld, (a primeira e segunda foram em Roma, respectivamente e no funeral de Marco Sciarra, vemo-lo de costas e Bond parece reconhecê-lo mas não tem tempo para se aproximar e depois na reunião da organização na qual a personagem nos é  apresentada de uma forma misteriosa que identifica Bond, apesar deste não conseguir vislumbrar bem o seu rosto) em que ele lhe mostra e lhe diz que foi o principal responsável por toda a dor pela qual 007 tem passado a vida toda, para um climax que acontecerá em Londres nas ruínas do edifício do MI6 e aquele que, pensamos ser, o confronto final com o seu inimigo jurado desde 1962. Se se olhar com atenção, vemos que, á semelhança dos filmes anteriores de Craig, acontece a piscadela de olhos a alguns filmes da série, nomeadamente a luta no comboio entre Bond e Mr.Hinx, que nos transporta às lutas entre Bond e Grant em “007 – Ordem para Matar”(1963), entre Bond e Mr.Big em “007 – Vive e Deixa Morrer” (1972) ou entre Bond e “Jaws” em “007 – Agente Irresistível”(1977), além de alguns outros momentos.

Felizmente, depois de muita acção de cortar a respiração e suspense, ou não estivéssemos num filme de James Bond, vemos, no final, o Agente Secreto de Sua Majestade partir com o seu novo interesse amoroso e (quase sentimos vontade de gritar de alegria) a conduzir seu eterno “Aston Martin DB5”, o melhor carro que alguma vez vimos aparecer na série.

Entramos novamente num grande hiatus da série. Aguardava-nos mais uma espera de 6 anos na qual tudo foi dito e escrito sobre James Bond 007.

            


O 25º filme da série começou a ser desenvolvido em 2016, quando Danny Boyle, autor de “Trainspotting” (1996), “28 Dias Depois” (2002) ou “Steve Jobs” (2015), entre outros filmes de sucesso, foi contractado para ser o realizador e que também iria colaborar na escrita do argumento. Daniel Craig já estava a bordo; assim como Léa Seidoux, Naomie Harris, Ben Whishaw, Ralph Fiennes, Rory Kinnear que retomaram os seus papéis, a que se juntaram Rami Malek, Lashana Lynch, Ana de Armas e os regressados Chistoph Waltz e Jeffrey Wright nos papéis respectivamente de Blofeld e Felix Leiter, o agente da CIA e amigo de Bond. 

Pouco tempo depois, Danny Boyle abandona o projecto, alegadamente por divergências criativas com os outros argumentistas do filme, Neal Purvis, Robert Wade, Cary Joji Fukunaga e Phoebe Walter-Bridge. Sem realizador, o filme atrasou o início da produção cerca de um mês. Depois de alguma procura (foram contactados, entre outros, David Mackenzie e Denis Villeneuve, que recusaram), sem sucesso, para arranjar um substituto para trás das câmaras, os produtores, Barbara Broccoli e Michael G. Wilson, voltam-se para a prata da casa e escolhem Joji Fukunaga, que já tinha alguma experiência na realização em televisão  onde já realizara alguns episódios da série “True Detective” (2014-2019), a mini-série “Maniac” (2018) e em cinema fizera “Jane Eyre” (2011) e “Sin Nombre” (2009), além de ser Produtor Executivo em outras séries. A produção teve então início em 2019 e era para estrear em 2020, mas a pandemia de COVID-19 atrasou a sua estreia para setembro de 2021 em Inglaterra e em outubro nos Estados Unidos e resto do mundo.

            


Passaram-se cinco anos desde que James Bond abandonou os Serviços Secretos Britânicos e vive agora na Jamaica depois do seu caso amoroso com Madeleine Swann não ter resultado. Bond é contactado pelo seu amigo de longa data, Felix Leiter, da CIA, que lhe pede ajuda para localizar um cientista, Valdo Obruchev, que foi raptado dum laboratório do MI6 onde estava a desenvolver um projecto de nome “Heracles” e de importância capital não só para a ciência, como também para a humanidade. Inicialmente, Bond recusa, mas depois de ser novamente contactado, desta vez por Nomi, uma agente do MI6 que herdou o seu nome de código, e esta lhe explicar o que é o projecto de Obruchev, ele aceita ajudar Leiter, apesar dos avisos da agente para não interferir.
Léa Seydoux é Madeleine Swann

Ao contrário do que seria de esperar e depois dos problemas na produção e sucessivos atrasos na sua estreia, “Sem Tempo para Morrer” tem todos os ingredientes para dar certo e fechar com chave de ouro a passagem de Daniel Craig pela série: a começar logo na sequência pré-genérico, a mais longa, desde que começaram a aparecer em “From Russia with Love – 007 Ordem para Matar” (1963), em que Bond, debruçado sobre o túmulo de Vesper Lynd (a fazer lembrar o início de “For Your Eyes Only – 007 – Missão Ultra-Secreta”, 1981), é  emboscado pelos agentes da Spectre (que Ernst Stavro Blofeld, o inimigo jurado de Bond, no seu breve encontro com o agente secreto na prisão, confessa ter sido ele o seu autor moral para se vingar) e onde vemos o Aston Martin DB5, nas muralhas de Matera, em todo o seu poderio bélico numa das mais bem conseguidas e excitantes cenas de acção  alguma vez feita para um filme de James Bond; depois passamos brevemente pela sua casa na Jamaica, local onde aconteceu a sua mais famosa e inesquecível missão; a sua saudável, embora não livre de consequências, concorrência com Nomi, a agente que herdou o código 007; um vilão, Lyutsifer Safin (Rami Malek numa excelente composição), que consegue quase ser tão vilão como Auric Goldfinger no filme com o mesmo título; em nenhum outro filme da série,(com excepção talvez de “Die Another Day – 007 Morre noutro Dia” (2002), em que Bond regressa ao activo após um ano numa prisão norte-coreana), o agente secreto esteve tão vulnerável como neste filme (é vê-lo cometer erros atrás de erros, fruto de alguma ineficácia sua), tudo isto apoiado na banda sonora de Hans Zimmer, cheia de referências musicais, não só ao tema de Monty Norman, sempre presente em 60 anos de filmes, mas também ao melhor que John Barry, o compositor que mais vezes foi utilizado, trouxe para a série.

Ana de Armas é Paloma, a Agente da CIA
Mas nem tudo são bons momentos, também existem alguns menos bons que merecem igual referência: a começar logo no tema musical “No Time to Die”, escrito por Finneas O’Connell e Billie Eilish e interpretado por esta última, que é das coisas mais fraquinhas e sem sal que alguma vez se ouviu num filme de James Bond (o pior talvez seja o tema “Another Way to Die”, interpretado por Jack White e Alicia Keys para o filme “Quantum of Solace” (2008), ao pé destas duas canções, até o tema da Madonna para “Die Another Day” soa bem melhor!). Apesar disso, o tema, tal como os dois filmes anteriores, ganhou o Globo de Ouro e o Oscar de Melhor Canção. Também o pouco tempo de écran dado à personagem de Paloma, a agente da CIA, interpretada pela bonita e sensual actriz Ana de Armas, a sua breve, mas marcante, aparição elegantemente vestida para sair e ir jantar, deixa qualquer um boquiaberto a pedir mais, foi mais um subaproveitamento de uma personagem que merecia maior desenvolvimento; também a secção central do filme, quando Bond recebe as novidades de Madeleine sobre Mathilde, era talvez desnecessária, apesar de cedo no filme, se perceber que algo se passa com Madeleine, na cena em que Bond a força a entrar no comboio, ela, sub-repticiamente, leva a mão à barriga. 

Mas, em todos estes momentos, altos e baixos, fica-nos a sensação de que a escolha de Cari Joji Fukunaga foi acertada, apesar da responsabilidade de fechar mais um ciclo no universo Bondiano.

            

James Bond e Companhia 

E o final? Que dizer acerca disto? Modestamente, acho que não assistimos à morte do Agente Secreto, penso que aquilo que nos é mostrado é, sim, “uma morte simbólica”, ou seja, a despedida de Daniel Craig da personagem que vestiu durante 15 anos, em cinco filmes, tinha que ser uma despedida em grande estilo como o foi a sua interpretação da personagem (e lembro que, no início, a sua escolha foi polémica entre os fans da série), ou, se quisermos ir mais longe, a sua morte significa o fim de uma era que durou 60 anos dividida em 25 filmes, reflectindo quase sempre as épocas que atravessou, interpretados por seis actores diferentes. Quem vier interpretar a personagem futuramente, tem que honrar o legado que lhe foi deixado pelos antecessores, sim, porque, tal como diz no genérico final de todos os filmes desde “Dr. No”, James Bond will Return” e, disso, não tenho a menor dúvida!

 

            

Bond, James Bond!



            

            

                                   

sábado, 5 de março de 2022

O HOMEM TRANQUILO – FORD & WAYNE NO SEU MELHOR

                      

 

            É um dado adquirido que num filme quanto mais simples for a história, melhor ou pior esse filme pode ser. Mas quando um realizador de renome internacional e de créditos firmados na Sétima Arte se propõe fazer uma obra simplista em tom de comédia romântica, o caso muda de figura e pode até tornar-se num projecto arriscado. Foi o que em 1952 John Ford resolveu fazer quando realizou “The Quiet Man – O Homem Tranquilo”. 

            


A ideia para “O Homem Tranquilo” nasceu a partir dum conto escrito em 1936 por Maurice Walsh, intitulado “Green Rushes”, que por sua vez foi inspirado numa notícia que o autor leu numa revista em 1933, em que se contava a história de um pugilista irlandês que, ao regressar à sua terra, se viu envolvido numa contenda com o irmão mais velho da sua noiva por causa do dote dela. Walsh diria mais tarde que o seu conto, para além da notícia que lera, se inspirava também num mito Celta em que dois reis (deuses) combatiam anualmente pela atenção e afectos de uma rainha (deusa). Ford viu o potencial da história e, já a pensar numa adaptação, comprou-a e entregou a escrita do argumento a Frank S. Nugent. Mas a proliferação de projectos, levou-o a guardar aquela história por mais algum tempo até poder pô-la no écran…na realidade foram 15 anos!! - 15 anos em que a John Ford e a “Republic Pictures”, para a qual trabalhava desde a sua formação em meados da década de 40, chegaram a um acordo que satisfizesse ambas as partes. A Produtora só deu luz verde a esta produção (que sempre achou que era uma aventura arriscada) depois do realizador fazer mais um Western e impôr que John Wayne e Maureen O’Hara fizessem parte do elenco - Foi só após terminar a rodagem de “Rio Grande” (1950) que Ford e companhia viajaram para a Irlanda e concretizaram este sonho antigo do realizador. Ford queria dar um tom de autenticidade ao seu filme e isso só poderia ser conseguido se a rodagem fosse feita no país onde decorre a acção.

       

John Wayne é Sean Thornton

Sean Thornton é um antigo pugilista que viveu a vida toda na cidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos. Quando pendura as luvas de combate, decide voltar para o seu país, a Irlanda e regressar à sua terra de origem, a pequena aldeia de Inisfree, para viver e comprar a velha quinta da família. Porém nem todo serão facilidades para Thornton, pelo meio, ele conhece Mary Kate Danaher, uma jovem camponesa, altiva e apaixona-se por ela, o problema é que ela é irmão de Will Danaher, cuja família sempre rivalizou com a de Thornton e que quer comprar as terras do primeiro que se encontram nas mãos de Sarah Tillane, uma viúva rica. 

        


O filme decorre na comunidade fictícia de Inisfree (que simbolicamente representa a liberdade e o regresso a um passado inocente) e serve para nos mostrar uma sociedade que Ford idealizou cujas únicas implicações sociais se baseiam nas diferenças entre as classes e afiliações políticas e religiosas e isso vê-se na relação que o Padre Lonergan, Católico e o Reverendo Playfair, Protestante, mantêm ao longo do filme, representa, de certa maneira, a norma sob a qual se regiam as tensões religiosas que ocorreram nos anos 30 na Irlanda do Norte (a acção do filme passa-se nos anos 20).

       


Desde que iniciou a rodagem do filme e até mesmo depois de ter deixado de realizar, John Ford sempre disse que “O Homem Tranquilo” era o seu filme mais pessoal e também um dos seus favoritos, já que, à semelhança do protagonista Sean Thornton, um irlandês-americano, também Ford era de descendência irlandesa e não é de espantar que o realizador se sinta projectado naquela figura bruta, porém um coração mole tal é a facilidade com que se apaixona pela altiva, bonita e doce Mary Kate. Ele gosta de afirmar que “O Homem Tranquilo” era a sua primeira história de amor, “uma história de amor para adultos”, o que não é inteiramente verdadeiro, já que todos os seus outros filmes (westerns e não só) continham, quase sempre, um enredo amoroso que, na maior parte da vezes, estava submergido na história e quase não se dava por ele. No entanto, neste filme particular, essa história é trazida habilidosamente para primeiro plano graças a um momento quase mítico: Thornton acabado de chegar, vem a pensar numa casa e numa terra e eis que dessa terra e nessa origem, surge no prado, vestida de blusa azul e saia vermelha, num fabuloso grande plano, Mary Kate para logo se sumir atrás das árvores num (igualmente) fabuloso plano geral…e este é só um primeiro momento, pode-se dizer, mágico, desta obra memorável cheia de grandes momentos, tão ao gosto de John Ford. 


Outro momento, que revela um Ford místico mas também algo erótico, mas igualmente grande, é a cena do beijo, na sequência que decorre no cemitério, quando começa a tempestade e a chuva vai colando a camisa ao corpo de Thornton revelando a sua carne (por alguma razão esta sequência acontece entre as lápides celtas). Claro que o grande momento do filme estava guardado para o final quando acontece a monumental cena de pancadaria entre os cunhados depois de Thornton ter ido buscar a sua mulher, que se preparava para o deixar, não porque deixara de o amar, mas por o considerar um cobarde, e a arrastar pelos cabelos pelo cais e a obrigar a caminhar a pé até à casa do cunhado para que este pague o dinheiro do dote. Will recusa e entre ambos começa uma cena de pancadaria, que decorre ao longo de algumas milhas e atrai cada vez mais habitantes da vila. É um final esperado, já que se percebe que devido ao comportamento e atitudes de cada um deles ao longo do filme, vamos sendo direccionados para uma das maiores cenas de pancadaria alguma vez vista no cinema. Ford poderia ter aproveitado para esta cena culminar num grande momento de acção, mas não! Ele opta (e se calhar aqui está outro dos grandes momentos que fizeram John Ford ser o realizador que foi e este ser o filme que é!) por manter o tom ligeiro e percebe-se que nunca existe a intenção fazer mal ao outro. A solução encontrada, no pub (e fora dele), que leva a paz em Innisfree e à harmonia na casa de Thornton, representa o final perfeito para o filme. Curiosamente, “O Homem Tranquilo” acaba por ser o primeiro filme de cinema, tanto quanto me consigo lembrar, a ter uma cena pós-créditos finais.

            

Maureen O'Hara é Mary Kate Danaher

Ter John Wayne como personagem principal deste drama em tom de comédia romântica (há falta de uma melhor definição), foi uma escolha acertada, já que a sua personagem, Sean Thornton é o tipo de pessoa que todos queremos ser e com quem as mulheres querem estar: ele é forte, silencioso (o “Tranquilo” a que se refere o título), paciente, amável e, acima de tudo, disposto a perdoar. Mas o sucesso do filme também deve ser repartido pelo restante elenco: desde logo Maureen O’Hara, irlandesa de nascimento, é Mary Kate Danaher, ruiva, impetuosa e de nariz empinado, revelou-se o par perfeito para o Sean Thornton de John Wayne. Ela quase nunca o deixa brilhar sem lhe fazer frente e, em algumas ocasiões, evidenciar-se por si mesma. Entre ambos os actores a química é mais que evidente, pode mesmo dizer-se que as suas personagens são daqueles casos em que os opostos atraem-se, mesmo quando Mary Kate se recusa a consumar o casamento enquanto não tiver o seu dote. Outro dos chamados “habitués” de Ford é Ward Bond, no papel de padre Peter Lonnergan (o narrador que nos conta a história em “flashback”), é uma daquelas personagens cuja aproximação calma e cuidada aos assuntos, tornam-na simpática e difícil de não se gostar; Barry Fitzgerald, é Michaeleen Flynn, o casamenteiro de serviço e responsável por alguns dos momentos cómicos do filme, principalmente quando está bêbado (é com ele que Thornton está quando vê Mary Kate pela primeira vez); Também Victor McLaglen, no papel de Will Danaher, o bruto e fanfarrão irmão de Mary Kate, que, apesar de se querer ver livre da irmã, não a vai deixar ir sem receber algo em troca  (o seu interesse amoroso é a viúva Tillane e as suas terras que incluem algumas pertencentes à família de Thornton).


           


 John Ford sempre soube tirar o melhor partido dos cenários em que decorrem as suas obras (dificilmente algum realizador conseguiria filmar “Monument Valley” da maneira que Ford o fez nos seus inúmeros westerns), em “O Homem Tranquilo”, tal também não é excepção. Graças à direcção de fotografia de Winton C. Hoch, colaborador do realizador desde o filme “She Wore a Yellow Ribbon – Os Dominadores” (1949), com o qual ganhou o seu primeiro Oscar, o filme ganha muito com o aproveitamento fotográfico que Hoch faz ao  tirar partido das cores dominantes na Irlanda de Ford: o quente verde e o ardente vermelho que predominam nesta obra-prima, com o público, daquela e de todas as gerações vindouras, a tirar o mesmo prazer que os actores e o realizador, em particular, a celebrar e, tal como a comunidade de Innisfree, o momento em que Sean Thornton, com quem já partilhavam alguns dos seus problemas, principalmente quando Mary Kate se recusa a ceder em relação à ordem dominante, ou ao seu marido, até ter aquilo que é seu por direito (neste caso o dote prometido pelo casamento), a alegria quando ele se reconcilia com a mulher. É neste confronto que o filme é inteligente e assume-se como uma espécie de conto de fadas em relação á mudança da natureza do poder numa relação sexual entre duas pessoas que não conseguem viver juntas até que cada uma delas aprenda a ser humilde e a submeter-se uma à outra.

            

O Realizador John Ford 

Ao contrário do que seria de esperar (e também para grande surpresa dos responsáveis da “Republic Pictures”), o filme acabou por ser um enorme sucesso, quer por parte do público, quer por parte da crítica. Recebeu sete nomeações para os Oscares, incluindo uma para Melhor Filme, para Melhor Realizador e para Melhor Actor Secundário (Victor McLaglen foi o único actor do filme a ser nomeado para os Oscares). Ganhou, infelizmente, apenas em duas categorias: a Melhor Fotografia e o Melhor Realizador (ao ganhar o seu quarto Oscar de realização, John Ford tornou-se o realizador mais vezes premiado pela Academia, recorde que ainda hoje se mantém). 

    



    

Goste-se, ou não, de “O Homem Tranquilo”, que se considere uma obra-prima como muitos o apelidaram, o que conta, na verdade, é que o filme foi uma viragem na carreira, não só de John Ford, que assim provou que conseguia fazer outro tipo de filmes que não fossem apenas westerns (embora filmes como “O Vale era Verde” ou  “As Vinhas da Ira”, provém isso mesmo), mas também na de John Wayne, que aqui mostra também ter algum talento para o drama (mesmo em tom de comédia romântica) e sensibilidade para outros papéis que não os de “cowboy” puro e duro! 

Em 2013, 60 anos depois da sua estreia, o filme foi selecionado para registo e preservação no Registo Nacional de Filmes da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, por ser cultural, histórico e esteticamente significativo.

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

                         “Citizen Kane” – O Melhor Filme de Sempre? 
    

 Numa votação levada a cabo em dezembro de 2000, pela revista de cinema “Empire”, na qual se pedia que o publico escolhesse aquele que considerava o melhor filme do século XX, o filme escolhido foi “Citizen Kane – O Mundo a seus Pés” (1941). De resto, o filme consta em todas as listas de escolhas que se fizeram, década após década, desde que o filme estreou. Mas, afinal, o que é que fez este filme ganhar o estatuto e a importância que adquiriu e que, já em pleno século XXI, continua a ter? Tudo começou depois da polémica, e hoje famosa, adaptação radiofónica do livro “The War of the Worlds – A Guerra dos Mundos”, escrito por H.G.Wells em 1895, que Orson Welles fez a partir do “Mercury Theatre”, na Broadway no seu programa “Mercury Theatre on the Air”. A transmissão da adaptação foi tão realista que practicamente todos os americanos acreditaram que estava realmente a acontecer uma invasão alienígena do nosso planeta. 
    Nessa altura, enquanto Hollywood procurava talentos na Broadway, a “RKO Radio Pictures” viu em Welles um possível novo e grande talento e contratou-o como realizador para fazer dois filmes com completa liberdade de escolha de argumento, de elenco, técnicos e ainda com direito ao “Final Cut” dos filmes (algo que só se tornaria realidade muitas décadas depois). Depois de algumas tentativas falhadas de realização, juntou-se ao argumentista Herman J. Mankiewicz (irmão do realizador Joseph L. Mankiewicz), que era escritor de peças na rádio onde Orson Welles trabalhava e ambos escreveram o argumento do filme “Citizen Kane” e mal sabiam que estavam a escrever uma nova página na história da Sétima Arte. 
     

Na sua mansão principesca de Xanadu, o magnata do jornalismo Charles Foster Kane, ás portas da morte, ao mesmo tempo que segura um globo de neve, pronuncia a palavra, “Rosebud” e morre. O sensacionalismo que a sua morte causa repercute-se pelo mundo inteiro e Jerry Thompson, um jornalista, é encarregado de investigar a vida e também a morte de Kane e tentar descobrir qual o significado da sua última palavra. 
O argumento do filme é inspirado na vida de William Randolph Hearst, um verdadeiro magnata da imprensa escrita americana com estreitas ligações ao poder político e de quem Mankiewicz era amigo até ser expulso pelo próprio do seu círculo de amigos. As semelhanças entre Hearst e Kane eram tantas (graças ao ódio de estimação que Mankiewicz passou a ter com o magnata) que o filme foi proibido de ser sequer mencionado nos jornais de Hearst. 
    


     

“Citizen Kane”é um dos (primeiros) raros filmes em que o elenco é quase todo composto por actores e actrizs desconhecidos no mundo do cinema, alguns deles vieram da companhia de teatro a que Welles pertencia e, além dele gostar de os usar neste filme e em outras obras futuras, muitos tiveram nesta obra a sua rampa de lançamento para carreiras cinematográficas. Para Orson Welles, William Alland, Ray Collins, Joseph Cotten, Agnes Moorhead e muitos outros, este filme representou o primeiro contacto com Hollywood e o seu mundo, ou, por outras palavras, foi a sua estreia na meca do cinema. No início da rodagem, Miriam Geiger, consultora na produção, preparou uma compilação manual de técnicas de filmagem que deu a Welles que a estudou cuidadosamente juntamente com visionamentos de alguns filmes clássicos europeus de Fritz Lang, René Clair ou Jean Renoir, mas também de filmes americanos de Frank Capra, King Vidor ou John Ford, que, revelou o actor- realizador mais tarde, foi a sua maior influência  
     

Com grande vontade de inovar e não desapontar, Welles rodeou-se de alguns nomes grandes do cinema em termos de técnica, como foi o caso de Gregg Tolland, director de fotografia de algumas grandes produções antes e depois de “Citizen Kane”. Gregg Tolland era um experimentalista, já com créditos firmados no cinema e na sua constante procura de inovação assistiu a diversas produções da “Mercury Stage Production” e percebeu que Welles era a sua melhor opção para mostrar técnicas de câmera que outras produções de Hollywood não lhe permitiam fazer. Tolland queria trabalhar com alguém que nunca tivesse feito cinema e, literalmente, ofereceu-se para trabalhar com Welles e a RKO contratou-o em junho de 1940. Orson Welles, Com toda a gente a bordo, obteve luz verde para começar oficialmente a rodagem a 1 de julho de 1940, embora os primeiros “takes” já estivessem filmados desde junho. A rodagem seria interrompida em outubro do mesmo ano para permitir que o realizador, o director de fotografia e o Produtor Artístico, Jerry Ferguson, procurassem outros localizações para filmar, mas em novembro a produção seria retomada para re-filmar alguns “takes”. A última cena a ser filmada (e a primeira a aparecer no filme) é a morte de Kane que aconteceu a 30 de novembro. 
     

A montagem do filme ficou a cabo de Robert Wise e do seu assistente, Mark Robson, ambos futuros realizadores de sucesso. O processo de montagem começou ainda decorriam as rodagens e, ao contrário do que hoje acontece, o realizador não estava sempre presente. Welles dera instruções detalhadas a Wise pelo que não lhe era necessário estar sempre presente pois o filme e a sua montagem estavam extremamente bem planeados. Tanto Robert Wise como Mark Robson percebiam que estavam a fazer algo diferente e inovador só não sabiam o quanto o seu trabalho iria mudar a história do cinema. 
     “Citizen Kane” começa com diversos planos de “Xanadu”, a mansão onde Charles Kane se encontra a morrer e pronuncia a enigmática palavra “Rosebud”, para depois nos mostrar em formato “cinejornal”, uma espécie de noticiário cinematográfico muito em voga nos cinemas nas décadas de 30, 40 do século passado, a vida do magnata dos jornais desde o seu começo e até ao seu falecimento e só depois destes primeiros minutos introdutórios (e já por si só enigmáticos) e que entramos verdadeiramente no filme, o que, também aqui era algo nunca visto até então. 
    
     

O filme rejeita a tradicional narrativa linear e cronológica (novamente a romper com aquilo a que se estava habituado a ver), e conta a história de Kane em “flashbacks” através de diferentes pontos de vista das muitas pessoas, interessantes e desinteressantes, que conviveram com ele, ou seja o equivalente cinematográfico àquilo a que se poderia chamar, em literatura, o narrador de pouca confiança. Welles, noutra ruptura com o filme tradicional, corta com a ideia de um só narrador e utiliza múltiplos narradores para contar a vida do magnata, em que cada um conta a vida dele sobrepondo-se à anterior e mostra-nos um Kane como um enigma, um homem complicado que deixa, no espectador, mais dúvidas que respostas acerca da sua personalidade. Orson Welles, de acordo com Gregg Toland, utilizou na rodagem uma extensa profundidade de campo, ou seja tudo o que está em primeiro plano, segundo plano, e tudo no meio está em foco, de modo que tanto a composição das cenas como os movimentos das mesmas determinavam para onde o olhar se dirigia primeiro. Outra técnica inovadora usada no filme foi as cenas de baixo para cima, permitindo que os tectos das habitações fossem mostrados em fundo em várias cenas e fazendo com que até as coisas mais aborrecidas fossem interessantes. Welles quis que todos os cenários fossem construídos de raiz ( para esconder os microfones) e com tecto . Ele queria que a câmera mostrasse aquilo que os olhos vêem. Na cena em que Kane se encontra com Jedediah Leland, o seu maior amigo, depois daquele ter perdido as eleições para Governador, Welles mandou cavar partir o cimento do chão para utilizar nesse buraco a câmera e assim obter um perfeitíssimo ângulo baixo. 
    

 Todo o filme é construído a partir de imagens visualmente magnificas, mas que na altura poucos deram por isso: as torres de “Xanadu”, Kane a discursar perante os seus eleitores; a porta do prédio da sua amante a dissolver-se numa fotografia de um jornal rival; o movimento da cãmera através duma claraboia em direcção a Susan no seu clube nocturno; ou aquele grande momento em que a câmera se eleva sobre o rosto de Susan na sua estreia no palco para um ajudante de palco e o plano que se segue de Kane, com o rosto escondido pela sombra a aplaudir desafiadoramente no salão silencioso; são tantos os momentos de magia cinematográfica neste filme que se torna difícil eleger um só que o possa definir. 
 A palavra à volta da qual gira tudo o filme aumentando o mistério à volta de Kane, o tal “Rosebud” nunca nos é explicado a que se refere mas ficam algumas pistas no ar, nomeadamente o que Jerry Thompson diz acerca dela “Talvez Rosebud seja alguma coisa que ele não pode ter ou algo que perdeu”, ou talvez a explicação esteja na cena final do filme, em que “Rosebud” significa a segurança, a esperança e a inocência da infância. na qual um homem passa toda a sua via a tentar alcançar. Seja como for, Charles Foster Kane foi um homem que teve tudo, um império nas suas mãos, o poder de fazer e desfazer, de criar, um homem que teve “O Mundo a Seus Pés” ( o que justifica plenamente o título em português) e que tudo perdeu. 
     Estreado com pompa e circunstância no RKO Palace Theatre a 1 de maio de 1941, “Citizen Kane” obteve um êxito mediano e assim continuou nas mais de 500 salas onde se estreou nos dias e semanas seguintes. A crítica olhou para o filme e considerou-o uma obra inovadora e de qualidade técnica superior a muitas produções da altura. O público, por seu lado, preferiu olhar para outras produções de mais fácil entendimento e ignorar quase por completo a obra de Welles. As comparações que faz com a vida de William Randolph Hearst eram tantas no seu entender que ele baniu o filme dos seus meios de comunicação e proibiu qualquer referência ao mesmo. Talvez estas fossem algumas das razões que impediram o filme de estrear em muitas cidades grandes, o medo das repercussões que teriam do verdadeiro magnata da imprensa. 
     

O filme só chegaria á Europa em 1946, com um sucesso igual ao dos Estados Unidos e, apesar das críticas negativas, vindas duma certa área intelectual de esquerda, principalmente a francesa, que acusava o filme de fazer uma apologia ao capitalismo e ao imperialismo americanos, o que, tendo em conta que a Europa e o mundo acabavam de sair duma guerra mundial, teve algum impacto na recepção ao filme. Foi só a partir de meados da década de 50 e 60, por via da “nouvelle vague” francesa é que o filme esteve no centro de uma nova reavaliação, principalmente por Jean-Luc Godard e François Truffaut e desta vez a impressão seria completamente diferente. Nomeado para nove Oscares da Academia, incluindo para Melhor Filme e Melhor Realizador, “Citizen Kane” seria apenas premiado com o Oscar de Melhor Argumento co-partilhado entre Orson Welles e Herman J. Mankiewicz, o que diga-se de passagem, é manifestamente pouco para um filme que ainda hoje é uma lição de como fazer cinema. Nas décadas seguintes, a importância do filme foi crescendo a tal ponto que foi, e continua a ser, considerado o melhor filme de todos os tempos. A influência do filme continua a ser nítida em todo o panorama cinematográfico e não existe nenhum realizador, americano ou não, que não tenha visto “Citizen Kane” pelo menos uma ou duas vezes na sua vida e não se sinta tocado pela história, pela técnica, mas principalmente pelos ensinamentos inovadores que a obra mostra e o considere uma referência obrigatória nos anais dos cinema. .

EMERSON, LAKE & PALMER II

            O trio, depois de um longo período de férias, sentindo-se revigorado, reuniu-se novamente em 1976, nos “Mountain Studios”, em Mo...