sábado, 5 de março de 2022

O HOMEM TRANQUILO – FORD & WAYNE NO SEU MELHOR

                      

 

            É um dado adquirido que num filme quanto mais simples for a história, melhor ou pior esse filme pode ser. Mas quando um realizador de renome internacional e de créditos firmados na Sétima Arte se propõe fazer uma obra simplista em tom de comédia romântica, o caso muda de figura e pode até tornar-se num projecto arriscado. Foi o que em 1952 John Ford resolveu fazer quando realizou “The Quiet Man – O Homem Tranquilo”. 

            


A ideia para “O Homem Tranquilo” nasceu a partir dum conto escrito em 1936 por Maurice Walsh, intitulado “Green Rushes”, que por sua vez foi inspirado numa notícia que o autor leu numa revista em 1933, em que se contava a história de um pugilista irlandês que, ao regressar à sua terra, se viu envolvido numa contenda com o irmão mais velho da sua noiva por causa do dote dela. Walsh diria mais tarde que o seu conto, para além da notícia que lera, se inspirava também num mito Celta em que dois reis (deuses) combatiam anualmente pela atenção e afectos de uma rainha (deusa). Ford viu o potencial da história e, já a pensar numa adaptação, comprou-a e entregou a escrita do argumento a Frank S. Nugent. Mas a proliferação de projectos, levou-o a guardar aquela história por mais algum tempo até poder pô-la no écran…na realidade foram 15 anos!! - 15 anos em que a John Ford e a “Republic Pictures”, para a qual trabalhava desde a sua formação em meados da década de 40, chegaram a um acordo que satisfizesse ambas as partes. A Produtora só deu luz verde a esta produção (que sempre achou que era uma aventura arriscada) depois do realizador fazer mais um Western e impôr que John Wayne e Maureen O’Hara fizessem parte do elenco - Foi só após terminar a rodagem de “Rio Grande” (1950) que Ford e companhia viajaram para a Irlanda e concretizaram este sonho antigo do realizador. Ford queria dar um tom de autenticidade ao seu filme e isso só poderia ser conseguido se a rodagem fosse feita no país onde decorre a acção.

       

John Wayne é Sean Thornton

Sean Thornton é um antigo pugilista que viveu a vida toda na cidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos. Quando pendura as luvas de combate, decide voltar para o seu país, a Irlanda e regressar à sua terra de origem, a pequena aldeia de Inisfree, para viver e comprar a velha quinta da família. Porém nem todo serão facilidades para Thornton, pelo meio, ele conhece Mary Kate Danaher, uma jovem camponesa, altiva e apaixona-se por ela, o problema é que ela é irmão de Will Danaher, cuja família sempre rivalizou com a de Thornton e que quer comprar as terras do primeiro que se encontram nas mãos de Sarah Tillane, uma viúva rica. 

        


O filme decorre na comunidade fictícia de Inisfree (que simbolicamente representa a liberdade e o regresso a um passado inocente) e serve para nos mostrar uma sociedade que Ford idealizou cujas únicas implicações sociais se baseiam nas diferenças entre as classes e afiliações políticas e religiosas e isso vê-se na relação que o Padre Lonergan, Católico e o Reverendo Playfair, Protestante, mantêm ao longo do filme, representa, de certa maneira, a norma sob a qual se regiam as tensões religiosas que ocorreram nos anos 30 na Irlanda do Norte (a acção do filme passa-se nos anos 20).

       


Desde que iniciou a rodagem do filme e até mesmo depois de ter deixado de realizar, John Ford sempre disse que “O Homem Tranquilo” era o seu filme mais pessoal e também um dos seus favoritos, já que, à semelhança do protagonista Sean Thornton, um irlandês-americano, também Ford era de descendência irlandesa e não é de espantar que o realizador se sinta projectado naquela figura bruta, porém um coração mole tal é a facilidade com que se apaixona pela altiva, bonita e doce Mary Kate. Ele gosta de afirmar que “O Homem Tranquilo” era a sua primeira história de amor, “uma história de amor para adultos”, o que não é inteiramente verdadeiro, já que todos os seus outros filmes (westerns e não só) continham, quase sempre, um enredo amoroso que, na maior parte da vezes, estava submergido na história e quase não se dava por ele. No entanto, neste filme particular, essa história é trazida habilidosamente para primeiro plano graças a um momento quase mítico: Thornton acabado de chegar, vem a pensar numa casa e numa terra e eis que dessa terra e nessa origem, surge no prado, vestida de blusa azul e saia vermelha, num fabuloso grande plano, Mary Kate para logo se sumir atrás das árvores num (igualmente) fabuloso plano geral…e este é só um primeiro momento, pode-se dizer, mágico, desta obra memorável cheia de grandes momentos, tão ao gosto de John Ford. 


Outro momento, que revela um Ford místico mas também algo erótico, mas igualmente grande, é a cena do beijo, na sequência que decorre no cemitério, quando começa a tempestade e a chuva vai colando a camisa ao corpo de Thornton revelando a sua carne (por alguma razão esta sequência acontece entre as lápides celtas). Claro que o grande momento do filme estava guardado para o final quando acontece a monumental cena de pancadaria entre os cunhados depois de Thornton ter ido buscar a sua mulher, que se preparava para o deixar, não porque deixara de o amar, mas por o considerar um cobarde, e a arrastar pelos cabelos pelo cais e a obrigar a caminhar a pé até à casa do cunhado para que este pague o dinheiro do dote. Will recusa e entre ambos começa uma cena de pancadaria, que decorre ao longo de algumas milhas e atrai cada vez mais habitantes da vila. É um final esperado, já que se percebe que devido ao comportamento e atitudes de cada um deles ao longo do filme, vamos sendo direccionados para uma das maiores cenas de pancadaria alguma vez vista no cinema. Ford poderia ter aproveitado para esta cena culminar num grande momento de acção, mas não! Ele opta (e se calhar aqui está outro dos grandes momentos que fizeram John Ford ser o realizador que foi e este ser o filme que é!) por manter o tom ligeiro e percebe-se que nunca existe a intenção fazer mal ao outro. A solução encontrada, no pub (e fora dele), que leva a paz em Innisfree e à harmonia na casa de Thornton, representa o final perfeito para o filme. Curiosamente, “O Homem Tranquilo” acaba por ser o primeiro filme de cinema, tanto quanto me consigo lembrar, a ter uma cena pós-créditos finais.

            

Maureen O'Hara é Mary Kate Danaher

Ter John Wayne como personagem principal deste drama em tom de comédia romântica (há falta de uma melhor definição), foi uma escolha acertada, já que a sua personagem, Sean Thornton é o tipo de pessoa que todos queremos ser e com quem as mulheres querem estar: ele é forte, silencioso (o “Tranquilo” a que se refere o título), paciente, amável e, acima de tudo, disposto a perdoar. Mas o sucesso do filme também deve ser repartido pelo restante elenco: desde logo Maureen O’Hara, irlandesa de nascimento, é Mary Kate Danaher, ruiva, impetuosa e de nariz empinado, revelou-se o par perfeito para o Sean Thornton de John Wayne. Ela quase nunca o deixa brilhar sem lhe fazer frente e, em algumas ocasiões, evidenciar-se por si mesma. Entre ambos os actores a química é mais que evidente, pode mesmo dizer-se que as suas personagens são daqueles casos em que os opostos atraem-se, mesmo quando Mary Kate se recusa a consumar o casamento enquanto não tiver o seu dote. Outro dos chamados “habitués” de Ford é Ward Bond, no papel de padre Peter Lonnergan (o narrador que nos conta a história em “flashback”), é uma daquelas personagens cuja aproximação calma e cuidada aos assuntos, tornam-na simpática e difícil de não se gostar; Barry Fitzgerald, é Michaeleen Flynn, o casamenteiro de serviço e responsável por alguns dos momentos cómicos do filme, principalmente quando está bêbado (é com ele que Thornton está quando vê Mary Kate pela primeira vez); Também Victor McLaglen, no papel de Will Danaher, o bruto e fanfarrão irmão de Mary Kate, que, apesar de se querer ver livre da irmã, não a vai deixar ir sem receber algo em troca  (o seu interesse amoroso é a viúva Tillane e as suas terras que incluem algumas pertencentes à família de Thornton).


           


 John Ford sempre soube tirar o melhor partido dos cenários em que decorrem as suas obras (dificilmente algum realizador conseguiria filmar “Monument Valley” da maneira que Ford o fez nos seus inúmeros westerns), em “O Homem Tranquilo”, tal também não é excepção. Graças à direcção de fotografia de Winton C. Hoch, colaborador do realizador desde o filme “She Wore a Yellow Ribbon – Os Dominadores” (1949), com o qual ganhou o seu primeiro Oscar, o filme ganha muito com o aproveitamento fotográfico que Hoch faz ao  tirar partido das cores dominantes na Irlanda de Ford: o quente verde e o ardente vermelho que predominam nesta obra-prima, com o público, daquela e de todas as gerações vindouras, a tirar o mesmo prazer que os actores e o realizador, em particular, a celebrar e, tal como a comunidade de Innisfree, o momento em que Sean Thornton, com quem já partilhavam alguns dos seus problemas, principalmente quando Mary Kate se recusa a ceder em relação à ordem dominante, ou ao seu marido, até ter aquilo que é seu por direito (neste caso o dote prometido pelo casamento), a alegria quando ele se reconcilia com a mulher. É neste confronto que o filme é inteligente e assume-se como uma espécie de conto de fadas em relação á mudança da natureza do poder numa relação sexual entre duas pessoas que não conseguem viver juntas até que cada uma delas aprenda a ser humilde e a submeter-se uma à outra.

            

O Realizador John Ford 

Ao contrário do que seria de esperar (e também para grande surpresa dos responsáveis da “Republic Pictures”), o filme acabou por ser um enorme sucesso, quer por parte do público, quer por parte da crítica. Recebeu sete nomeações para os Oscares, incluindo uma para Melhor Filme, para Melhor Realizador e para Melhor Actor Secundário (Victor McLaglen foi o único actor do filme a ser nomeado para os Oscares). Ganhou, infelizmente, apenas em duas categorias: a Melhor Fotografia e o Melhor Realizador (ao ganhar o seu quarto Oscar de realização, John Ford tornou-se o realizador mais vezes premiado pela Academia, recorde que ainda hoje se mantém). 

    



    

Goste-se, ou não, de “O Homem Tranquilo”, que se considere uma obra-prima como muitos o apelidaram, o que conta, na verdade, é que o filme foi uma viragem na carreira, não só de John Ford, que assim provou que conseguia fazer outro tipo de filmes que não fossem apenas westerns (embora filmes como “O Vale era Verde” ou  “As Vinhas da Ira”, provém isso mesmo), mas também na de John Wayne, que aqui mostra também ter algum talento para o drama (mesmo em tom de comédia romântica) e sensibilidade para outros papéis que não os de “cowboy” puro e duro! 

Em 2013, 60 anos depois da sua estreia, o filme foi selecionado para registo e preservação no Registo Nacional de Filmes da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, por ser cultural, histórico e esteticamente significativo.

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