domingo, 12 de março de 2023

O REGRESSO DOS HERÓIS

   

            


Neste blog, sempre que escrevo sobre qualquer filme cuja acção se passa na guerra do Vietname, refiro-me sempre aquilo a que chamo “a quinta essência do Vietname”, ou seja, da muita variedade cinematográfica sobre aquela guerra, nomeio sempre os filmes que, na minha opinião, melhor retrataram o conflito. “O Regresso dos Heróis” é mais um desses filmes.   

O Regresso dos Heróis, “Coming Home” no original, foi um projecto concebido por Jane Fonda como sendo o primeiro filme da sua própria produtora, a “IPC Films”, que fundou com Bruce Gilbert, um seu amigo dos tempos em que ela protestava contra a intervenção americana no Vietname. Inspirada pela sua amizade com o veterano Ron Kovic, que conhecera numa manifestação contra o conflito e que acabara de publicar a sua autobiografia “Born on the Fourth of July – Nascido a 4 de Julho” (que anos mais tarde Oliver Stone transformaria num filme com o mesmo título), a actriz queria fazer um filme sobre aquela guerra que trouxera grandes transformações e criara divisões entre a população americana. 

            



Sally Hyde é uma esposa conservadora, casada com Bob Hyde, um Capitão dos Marines que está prestes a embarcar para o Vietname, que vê na sua comissão uma oportunidade de progressão de carreira. Liberta dos seus deveres como esposa e sem nada que fazer em casa e inspirada por uma sua amiga cujo irmão voltou para casa com problemas emocionais depois de ter ido ao Vietname, Sally oferece-se como voluntária para trabalhar num hospital para Veteranos de Guerra onde vai encontrar reencontrar Luke Martin, um antigo colega universitário que, depois de ter ido combater no Vietname, ficou paraplégico. Entre os dois, depois de alguns conflitos, fruto da oposição que Luke faz agora à guerra, nasce uma relação que se vai aprofundando com o tempo e que eventualmente lhes trará inevitáveis consequências quando Bob regressar.

     

Jane Fonda, Produtora e Actriz

Em 1972, Jane Fonda tinha encomendado à sua amiga Nancy Dowd, que escrevesse uma história acerca das consequências da guerra vistas pelos olhos da mulher de um militar. O resultado foi “Buffalo Ghosts”, que se focava em duas mulheres voluntárias num hospital de veteranos que têm de se confrontar com os efeitos que a guerra causa em termos de baixas e nas respectivas famílias. O projecto arrastou-se durante anos até que Bruce Gilbert e Jerome Hellman lhe pegaram. Reuniu-se o provável elenco, que incluía, além de Jane Fonda, Bruce Dern e Jon Voight, para uma primeira leitura do que Nancy Dowd escrevera, a que se juntaram Hal Ashby, Haskell Wexler enquanto Waldo Salt e Robert C. Jones rescreviam o argumento. Unia-os a todos uma forte oposição à Guerra do Vietname e a preocupação com os veteranos que vinham de lá com grandes dificuldades de adaptação à nova vida.

Inicialmente era John Schlesinger, que já havia trabalhado com Hellman e Voight no excepcional “Midnight Cowboy – Cowboy da Meia-Noite” (1969), quem iria dirigir o filme, mas acabou por se retirar do projecto por se sentir desconfortável com o tema. 

Jane Fonda, ligada ao filme desde o início e antes de se fixar no elenco final, queria ter como parceiro um nome que fosse sinónimo de sucesso. Foram sondados actores como Al Pacino, Jack Nicholson, Sylvester Stallone e até mesmo Robert Redford, que, por uma razão ou outra declinaram o convite. Jon Voight, amigo de Fonda, inicialmente era para fazer o papel do marido de Sally, acabou por ficar com o papel do veterano paraplégico. Bruce Dern, amigo de Jon Voight e um actor muito conotado com personagens de carácter sádico, foi escolhido pessoalmente por Fonda para interpretar o papel de Bob. 

Quando tudo estava quase pronto para começar a rodagem, houve problemas com o argumento que teve que ser rescrito inúmeras vezes e Jane Fonda fora entretanto convidada para mais dois filmes que não quis dizer que não por serem veículos para a sua produtora: “Julia – Julia” de Fred Zinnemann (1977) e “Comes a Horseman – Uma Mulher Implacável” de Alan J. Pakula (1978). Finalmente quando já não se podia esperar mais (porque Fonda queria o filme pronto a tempo de fazer carreira nos circuitos comerciais e festivaleiros e para os Oscars), a rodagem começou com Hal Ashby como realizador.

            


 Um dos grandes trunfos de “O Regresso dos Heróis” está na mudança que se opera na personagem de Sally Hyde, interpretada magistralmente por Jane Fonda. No início ela é o exemplo perfeito da esposa cujo marido vai para guerra combater, ela não tem uma opinião própria sobre os assuntos e partilha as opiniões dele; é reservada e envergonhada, mas, a partir do momento em que reencontra Luke, a sua personalidade começa a mudar e ela torna-se muito mais activa social e também sexualmente quando inicia a sua relação com o paraplégico, e activista contra a guerra que no início defendia pela voz do seu marido. 

         


O filme também não se compromete com o tratamento que é dado aos veteranos, embora a sequência inicial, de paraplégicos a viver o seu dia-a-dia, possa, de certa maneira, contradizer esta opinião e se pensar que estamos perante mais um filme de coitadinhos e não sobre um dos maiores traumas da sociedade americana das últimas décadas do século XX e que também, numa certa medida, afecta a sociedade portuguesa e a maneira como ela lidou com a guerra colonial em África. É na maneira como  lida com o trauma dos veteranos que não se conseguem adaptar á sociedade, na maneira como trata o relacionamento entre uma mulher, cujo ideal vai mudando ao longo do filme, e um veterano, cheio de dor, ódio e frustração que se arrasta pelos corredores do hospital primeiro numa maca, depois com muletas e por fim condenado a uma cadeira de rodas para o resto da vida e que sabem que o seu relacionamento terá inevitavelmente que acabar quando o marido dela regressar, que o filme se move intrinsecamente sem nunca resvalar para a lágrima fácil, pelo contrário, para a dura realidade que ainda hoje é parte da nossa herança.

           


 O filme tem altos e baixos,  momentos em que passa por algumas dificuldades nas quais a solução escolhida não é a melhor, mas também consegue soluções satisfatórias, como por exemplo o relacionamento entre as personagens de Luke e Sally que passa por alguns momentos de tenção desde que ele lhe pergunta se ela é daquelas mulheres que só excita com aleijados e percebe-se ao longo do filme que não é o caso como se verá ao longo do filme em que as cenas íntimas do casal são filmadas de um modo directo e é mostrada a enorme afeição que ambos sentem, coisa que acabamos por perceber e até aceitar. Onde o filme começa a resvalar para a mediania é quando Bob regressa, ferido, do Vietname e descobre a traição de sua mulher. As cenas finais mostram alguma incerteza sobre como lidar com aquele tipo de material e nem o trabalho de Ashby consegue solucionar a situação que nos leva ao final quase inevitável.

            

O Realizador Hal Ashby

A realização de Hal Ashby, antigo editor e vencedor de um Oscar nessa categoria pelo filme “No Calor da Noite”, de Norman Jewison, em 1967 e realizador de filmes como “Shampoo” (1975), “Caminho de Glória”(1976) ou “Bem-Vindo Mr. Chance” (1979), não é adequada ao material que tinha em mão que merecia talvez um melhor tratamento se, por acaso, tivesse outro realizador atrás daa câmaras que acompanhasse o desenvolvimento desde o seu início (Ashby acabou por ser uma solução de recurso quando o projecto ficou sem realizador), o resultado teria sido diferente. O filme baseia-se todo no trabalho de um elenco de excepção que, além de fazer justiça ao argumento, consegue levar o filme a bom porto, suportado pela mediana realização de Hal Ashby que, apesar de alguns momentos mais lúcidos onde se pensa que finalmente o filme vai deslumbrar, mas não chega a esse patamar.

O problema de “O Regresso dos Herói”, foi, no meu entender, o facto de ter surgido no mesmo ano de “O Caçador” de Michael Cimino e ter abordado a mesma temática que o segundo que também lidava com o trauma dos que regressavam do Vietname mas focava a sua atenção nos que lá ficavam e, penso que foi aqui que se deu a grande diferença entre ambas as obras e que faz com que este filme seja também um dos meus eleitos sobre o que foi a guerra do Vietname. 

            


Nomeado para oito Oscares da Academia, incluindo Melhor Filme e Melhor Realizador, o “Regresso dos Heróis” ficou-se pela vitória em três das categorias: Melhor Actor para Jon Voight, Melhor Actriz para Jane Fonda e também Melhor Argumento Original. Neste ano o grande vencedor da cerimónia foi o filme de Cimino que arrecadou os prémios de Melhor Filme e Melhor Realizador, além de mais três estatuetas que incluíram a de Melhor Actor Secundário para Christopher Walken.

            O “Regresso dos Heróis” acaba por ser um retrato da sociedade americana preconceituosa e anti-guerra do Vietname dos anos 60 do século XX (retrato que Hal Ashby já nos havia apresentado em “Shampoo”) e também um dos definitivos filmes sobre o conflito mais devastador da sociedade americana. Uma daquelas pequenas obras-primas que o cinema nos ensinou a ver e a descobrir.

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