sábado, 28 de março de 2020

                             MANON DAS NASCENTES – UM DRAMA RURAL II

            Em anos recentes, o cinema tem vindo a assistir a histórias que, de um momento para outro, se transformam em dezenas de pequenas coisas com muita acção, carros que são arremessados pelo ar, personagens são esburacados por tiros, heróis que num momento de perigo conseguir esboçar piadas ou frases feitas, tudo isto sem qualquer relação com o fulcro da história que se tenta contar, etc. e tudo em nome de quê? De dinheiro. Hoje em dia, infelizmente, substitui-se a qualidade duma construção narrativa pelo “box-office” que esse filme possa fazer, é um sinal dos tempos.
        Com “Manon das Nascentes”, que é a conclusão da história iniciada em “Jean de Florette”, Claude Berri, o seu realizador dá-nos precisamente o oposto daquilo que escrevi acima. Avança com ritmo certo ao longo dos acontecimentos de quatro gerações, demonstrando com grande qualidade o impacto que os pecados dos pais podem vir a ter nos filhos. Apesar deste poder ser visto sem se ver o filme anterior, impacto só é compreendido na sua grandeza depois de se ver toda a história desde o princípio; só então é que o final do filme pode ser entendido na sua totalidade.
         
Passaram-se dez anos desde os acontecimentos de “Jean de Florette”. Ugolin Soubeyran (“Galinette”, é como lhe chama o seu tio, César), é um próspero homem de negócios graças á plantação de cravos que faz em “Les Romarins”, propriedade que pertencera a Jean Cadoret, antigo cobrador de impostos que herdara o terreno e que nunca o conseguiu cultivar por falta de água, graças a um esquema montado por César e Ugolin que taparam a nascente. Jean acabou por morrer, e César e o seu inútil sobrinho compraram a propriedade a Aimée, viúva de “Jean” que queria regressar a Paris, por um preço barato e destaparam a nascente. Entretanto, “Manon”, filha de “Jean”, foi viver para as montanhas com um casal idoso de poceiros e tornou-se numa linda pastora. Um dia Ugolin vê-a a tomar banho e apaixona-se obsessivamente por ela, mas “Manon” não quer nada com ele porque nunca esqueceu aquilo que testemunhou ainda criança e anseia por vingança contra quem lhe destruiu a família.

Emmanuelle Béart é o nome que se junta ao elenco que transitou do filme anterior, Yves Montand e Daniel Auteuil. A actriz, que já havia actuado em outras produções francesas, consegue aqui o papel que lhe deu fama tanto na frança como fora dela. A sua interpretação de “Manon” é magnética, consegue cativar a atenção do espectador através da sua beleza estonteante e interpretação poderosa, principalmente baseada nos seus olhos expressivos, daí que talvez as suas falas sejam espaçadas.
            
Apesar de rodados ao mesmo tempo, consegue perceber-se a diferença de tom e ritmo narrativo entre ambos. ”Jean de Florette”é leve, talvez devido ao optimismo ilimitado que preenche Jean na sua constante procura por água para as suas culturas e existem momentos em que parece que ele vai ter sucesso, apesar dos obstáculos postos no seu caminho por “César” e “Ugolin”. 
Em “Manon das Nascentes” o tom é cruel e sinistro. O feitiço volta-se contra o feiticeiro sem piedade, neste caso contra tio e sobrinho quando “Manon” começa a sua cruzada para vingar a morte do seu pai. Ironicamente não é a sua decisão que irá causar a destruição dos seus inimigos, mas sim outros acontecimentos que entretanto surgem e revelações que ninguém estava á espera.
            “Jean de Florette e “Manon das Nascentes”, ao longo das suas quase quatro horas de duração, avançam implacavelmente como se duma tragédia grega se tratasse. Vistos como um filme só, é um verdadeiro tratado sobre a natureza humana e o retrato que mostra é muito pouco lisonjeiro. Jean, cujas características que o definem são a sua inocência e, como já referi, o seu optimismo ilimitado, é destruído por aqueles que o rodeiam motivados pelo engano e pela ganância e interesse próprio. Existem momentos em que Jean parece ser indomável na sua vontade, mas, no fim, nem ele próprio consegue vencer a natureza e a crueldade dos seus pares. Ugolin e César, donos do poder na vila, se bem que são os principais culpados, não são os únicos; os habitantes da vila, ao encobrirem aquilo que sabem com o seu silêncio, também são culpados. No segundo filme, o poder muda de César e Ugolin para Manon e ela vinga-se sem dó nem piedade ou compaixão sobre tudo e todos. No final, Manon é a única a ter um final feliz.
       
     
Poderia dar-se o caso de um filme (ou melhor, dois) cujo enredo pormenoriza os problemas e tribulações em torno do abastecimento de água a uma comunidade agrícola rural, não ser interessante, mas não é o caso de “Jean de Florette” e “Manon das Nascentes”. Aquelas são só as situações que vão tecer a história, mas o cerne da questão é mesmo a complexidade das acções humanas e suas interações. As personagens ganham vida e parecem sair do écran. Claude Berri, responsável pelo argumento juntamente com Gerárd Brach, ao adaptarem a novela de Marcel Pagnol, tinham em vista um alcance maior. “Jean de Florette e “Manon das Nascentes” foram as suas primeiras produções a serem exportadas para o outro lado do atlântico e, com o sucesso que ambos os filmes obtiveram, as suas produções continuaram a receber alguma distribuição americana.
     
Nestes dois filmes, apesar da sensação de justiça poética que Berri pretende imprimir numa escala que apanhe gerações, ele é solidário com todas as personagens, até mesmo com aqueles cujos motivos são, acima de tudo, obscuros. Ele não os demoniza nem os trata como vedetas. Ele desafia-nos a aceitá-los tal como são, nos seus comportamentos e promessas e a passarmos algum tempo na sua companhia. As voltas e reviravoltas da narrativa, a qualidade das interpretações, a fotografia soberba novamente por Bruce Nuytten e a mestria da realização de Berri, tornam estes dois filmes parte da grande produção europeia e obras-primas da cinematografia francesa da segunda metade do século XX.
            Tal como “Jean de Florette”, “Manon das Nascentes”, quando estreou, alguns meses depois do seu antecessor, foi um grande sucesso e abriram-se-lhe as portas da época da premiação. Mas ao contrário do que acontecera com o primeiro filme, “Manon das Nascentes” ganhou apenas um “César” de melhor Actriz Secundária” para Emmanuelle Béart em dois possíveis e uma nomeação para os BAFTA de Melhor Filme Estrangeiro.  
Os dois filmes formam uma só narrativa complexa e indissociável (apesar de no final de “Jean de Florette” aparecer a palavra “intermission”), e não faz qualquer sentido ver um sem ver o outro. 
Este é uma das mais poderosas e emocionalmente complexas histórias alguma vez transpostas para o cinema. É uma tragédia de proporções épicas, mas numa escala pessoal e que nas mãos de outro realizador menos eficaz, provavelmente resultaria num filme lamechas e muito dado á lágrima. 







Nota: as imagens e vídeo que ilustram o texto foram retiradas da Internet


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