sexta-feira, 31 de julho de 2020

SPARTACUS


     
Quando estreou, em 1960, “Spartacus” foi olhado de soslaio pela crítica, não pelo público que o tornou num grande sucesso de bilheteira para a “Universal Pictures” que o distribuiu e que seria o seu maior êxito até 1970 quando “Airport – Aeroporto” de George Seaton estreou e inaugurou o género “Filme-Catástrofe”. A crítica, por seu lado, questionava-se sobre o porquê de uma nova superprodução ambientada no Império Romano depois de “Ben-Hur” (William Wyler, 1959) ter sido um grande sucesso e ter-se tornado no filme mais premiado da História do Cinema ao arrebatar 11 Oscares da Academia, incluindo o de Melhor Filme e de Melhor Realizador, em 12 nomeações? Mas, como se veio a provar, “Spartacus” era muito mais que isso.
     Em 73 a.C., um escravo trácio, de nome Spartacus, que trabalha numa exploração mineira, é condenado a morrer á fome por homícidio de um Centurião romano. Por sorte, um homem de negócios e lanista (dono de uma escola de gladiadores), chamado Lentulus Batiatus, enquanto procurava candidatos a gladiadores, repara no seu potencial e decide comprá-lo também. Já na escola de gladiadores, Spartacus apaixona-se por Varinia, que trabalha nas cozinhas e é igualmente escrava. Depois de uma demonstração das capacidades dos gladiadores de Batiatus pedida por um Senador Romano, Marcus Crassus, este conhece Varinia e fica impressionado com ela, decide comprá-la ao lanista e pede-lhe para a levar para Roma quando lá for. Ao vê-la partir no dia seguinte, Spartacus, farto de sofrer humilhações ás mãos dos romanos, revolta-se e, juntamente com outros, fogem para as montanhas decididos a serem livres.
   

A ideia de fazer “Spartacus” nasceu depois de Kirk Douglas ter ficado desapontado com o realizador William Wyler por este ter escolhido Charlton Heston para o papel principal de “Ben-Hur”, que Douglas desejava para si, depois de já ter trabalhado com o realizador no filme “Detective Story – A História de Um Detective” (1951). Mais tarde, Edward Lewis, um dos vice-presidentes da “Bryna Productions”, a produtora de Kirk Douglas, fez chegar ás suas mãos o livro “Spartacus”, escrito por Howard Fast em 1951 e que, no entender de Lewis, tinha uma temática interessante de um homem a desafiar o poderoso Império Romano. O actor ficou de tal modo impressionado com o livro que comprou os direitos de adaptação a Fast pagandodo seu próprio bolso. Depois de conseguir que Laurence Olivier, Charles Laughton e Peter Ustinov entrassem no projecto e que Edward Lewis produzisse, Douglas conseguiu um financiamento final da parte da “Universal Studios”. Faltava agora o argumento e um realizador.
   
O livro que deu origem ao filme
Howard Fast foi contratado para escrever o argumento do seu próprio livro, mas sentiu dificuldades em se adaptar ao formato. Para o seu lugar foi chamado Dalton Trumbo, argumentista já com créditos firmados em Hollywood e vencedor de dois Ocares da Academia. Mas Trumbo tinha um problema: o seu nome fazia parte da lista negra dos “ Dez de Hollywood”, indicados e acusados de serem membros do partido comunista e de desrespeito ao Senado e á Comissão que os interrogou. Dalton Trumbo queria escrever o argumento sob o pseudónimo de “Sam Jackson”, mas Douglas, depois de falar com Lewis, fez questão que Trumbo assinasse o argumento com o seu próprio nome. Para realizar o filme, Kirk Douglas queria “Sir” David Lean, que realizara em 1957 “The Bridge on the River Kwai – A Ponte do Rio Kwai” que triunfara nos Oscares ao vencer os de Melhor Filme do Ano e de Melhor Realizador. Lean recusou e Douglas contratou então Anthony Mann, então conhecido como realizador de westerns como “Winchester ’73 – Winchester ‘73” (1950) ou “The Man from Laramie – O Homem que veio de Longe” (1955), que acabou despedido ao final da primeira semana de rodagem (dele apenas ficou toda a sequência inicial até Spartacus ser comprado por Batiatus), alegadamente por incompatibilidade criativa com Kirk Douglas. O actor lembrou-se então de Stanley Kubrick com quem trabalhara no filme “Paths of Glory – Horizontes de Glória” (1957), um drama situado durante a Primeira Guerra Mundial e da qual o actor só tinha boas recordações do bom relacionamento com o jovem realizador. Douglas abordou o realizador e este aceitou a tarefa.
   
A rodagem revelou-se uma tarefa difícil para Kubrick pois estava em constante conflicto com Trumbo por causa da personagem de Spartacus que o argumentista via como sendo imaculado, sem falhas de carácter e Kubrick queria-a complexa e com peculiaridades (como viriam a ser algumas das suas personagens em obras futuras). Kirk Douglas aceitou ambas as visões e pediu a Trumbo que reescrevesse algumas cenas para conterem a visão do realizador. Também no campo da direcção de fotografia houve conflicto entre o realizador e Russell Metty, o veterano director de fotografia com uma vasta experiência em grandes produções nas décadas anteriores. Metty recusava-se a receber instruções precisas do realizador sobre o trabalho das cameras e da utilização da luz. Quando Metty ameaçou demitir-se da produção, Douglas, sabendo que Kubrick tinha sido fotógrafo no início da sua carreira, portanto sabia o que fazia, aceitou sua demissão e Kubrick assumiu também a direcção de fotografia. Na ficha técnica, no entanto, manteve-se o nome de Metty.
   
O elenco de Spartacus
Varinia e Spartacus
Em termos de elenco, “Spartacus” é um filme incrível, com uma variedade de interpretações que vão desde a mais fraca até à melhor. Se a prestação de Tony Curtis, como Antoninus, o escravo educado e letrado que começa como sendo escravo pessoal de Marcus Crassus que depois percebe que nunca será mais nada do que um entretenimento pessoal do romano e que se junta ás hostes de Spartacus onde o seu tratamento é completamente diferente do que fora anteriormente, o que o leva a tomar uma decisão única, é a interpetação mais fraca do filme (não por culpa do actor, mas porque o papel assim o dizia), pelo meio temos Kirk Douglas, no papel de Spartacus onde o actor mostra a sua versatilidade como o escravo-gladiador iletrado e inocente nas coisas da vida mas que ousou sonhar com a liberdade e afrontar a toda poderosa Roma; Jean Simmons é Varinia, a escrava que desperta sentimentos em Spartacus e cujo romance se torna num dos sub-argumentos do filme sem no entanto interferir na história em si, são momentos subtis e cautelosamente introduzidos no início do filme sem interferirem directamente na acção (é um dos grandea achados do filme); depois vêm as verdadeiras lições de interpretação dadas por Charles Laughton como Gracchus, o grande rival de Crassus no Senado Romano e o único que o pode deter na sua ambição de se tornar dono de Roma; Laurence Olivier é Marcus Crassus, o ambicioso senador que aceita chefiar as legiões de Roma e capturar e destruir Spartacus e o seu exército de modo a tornar-se no Primeiro Homem de Roma. A interpretação do actor britânico é excepcional de tão incisiva e realista que é; finalmente Peter Ustinov, como Lentulus Batiatus, o dono da escola de gladiadores, é perfeitamente brilhante no seu papel. Batiatus tenta estar sempre de acordo com deus e o diabo (Gracchus, no primeiro caso, que idolatra e que o ajuda no final e Crassus, no segundo, a quem tem de agradar para conseguir os seus intentos e manter a sua escola aberta). De todas as interpretações, a de Ustinov é aquela que marca verdadeiramente o filme e com a qual seria premiado com um Oscar da Academia.
   
Stanley Kubrick na rodagem
Quando Stanley Kubrick pegou no projecto, só tinha quatro filmes realizados e todos de baixo orçamento (“The Killing – Um Roubo no Hipódromo” de 1956 e “Paths of Glory – Horizontes de Glória”de 1957, posteriormente seriam considerados obras-primas cada uma dentro do seu género). “Spartacus” era algo maior, não só em termos de orçamento, como também no elenco carregado de nomes de peso e no número de figurantes. Mas o realizador mostrou-se á altura do desafio, apesar de se perceber que o controle não era totalmente seu ( como se viria a ver nos anos e nas obras seguintes que realizou), Kubrick deixou a sua marca e o seu lendário perfeccionismo bem vincado na obra (toda a sequência da batalha final é disso exemplo).
   

A ideia patente no filme é a da luta pela liberdade, mesmo quando a própria vida está em risco. É uma história de luta contra a prepotência dos Estados o que torna o filme, de certa forma, um produto da época em que foi feito, onde a visão do século XX ao passado é a génese da ideia principal ( a narrativa inicial, em voz off, é um exemplo disso mesmo). Esta mesma ideia está explícita na cena em que depois da derrota do exército dos escravos, Crassus procura encontrar Spartacus entre os prisioneiros e oferece mesmo o perdão ( e o consequente regresso á condição de escravo) a quem o identificar. Os sobreviventes respondem com um quase uníssono “I’m Spartacus!” (que foi uma ideia que Fast usou no seu livro) e, para a década em questão (anos 60) a frase viria a tornar-se icónica na luta contra o McCarthismo (se fosse hoje, tornar-se-ia viral!).
    “Spartacus” antes de estrear foi submetido á apreciação da Comissão de Censura que pressionou o estúdio a fazer cortes de algumas cenas consideradas demasiado violentas e outras onde se fazia referência a orientações sexuais de algumas personagens. No meio de alguns protestos por parte dos produtores e do realizador (que o renegou durante anos), o filme estreou em outubro de 1960 com menos 23 minutos do que a sua duração original (a primeira versão que foi exibida antes da estreia e das polémicas que a rodearam, tinha 202 minutos de duração, mas algum desse material foi considerado perdido quando o filme foi remontado). Durante décadas o filme foi exibido numa versão de 176 minutos, até que em 1991, o estúdio autorizou uma primeira restauração do filme, tendo em conta o sucesso que havia sido alcançado dois anos antes com a restauração de “Lawrence da Arábia”, o clássico que “Sir” David Lean tinha realizado em 1962.
A cena do banho censurada na estreia do filme
    O responsável por essa restauração tinha sido Robert A.Harris. Steven Spielberg foi um dos responsáveis pela restauração de “Spartacus”, tal como tinha acontecido em 1989 com o filme de Lean e pediu que Stanley Kubrick fosse informado do que se estava a passar e queria, tal como os produtores do filme, que o realizador desse a sua aprovação final ao trabalho e ao de Harris. A restauração de cerca de 11 minutos, incluiu a abertura, intervalo e final (fundo preto com as palavras “Ouverture”,“Intermission” e “Closing” e a banda sonora de Alex North), algumas cenas de batalha, uma ou outra sequência mais prolongada e a cena do banho em que Crassus tenta seduzir o seu criado, Antoninus, em que fala da analogia entre comer ostras e comer caracóis (para expressar que as preferências sexuais de cada um são mais uma questão de gosto do que de moralidade). A banda sonora da cena estava estragada, teve de ser refeita. Tony Curtis repetiu as suas linhas e como Olivier já tinha morrido em 1989, a sua voz foi dobrada por “Sir Anthony Hopkins. O realizador, que entretanto regressou ao projecto, a residir permanentemente em londres, enviou as instruções sobre como a cena deveria ser feita. O resultado não poderia ter sido melhor e, depois de uma segunda restauração em 2015 onde lhe foram inseridos mais 12 minutos, “Spartacus” finalmente estava no seu esplendor total e pronto para estrar novamente, 55 anos depois da sua estreia original.
   
Além de ganhar o Oscar para Melhor Actor Secundário, o filme venceu ainda noutras três categorias todas técnicas, num total de seis nomeações que não incluíam nem as de Melhor Filme, Melhor Realizador e Melhor Actor. “Spartacus” deu origem a diversos outras produções internacionais, sem grande destaque, ao longo das décadas subsequentes. Recentemente um telefilme, “Spartacus”, realizado em 2004 por Robert Dornhelm e uma série de televisão, “Spartacus” entre 2010 e 2013, criada por Steven S.DeKnight, vieram chamar novamente a atenção para o filme de 1960. O filme de Kubrick permanece como uma das grandes superproduções da era dourada de Hollywood e uma certa vontade de afrontar o sistema e os poderes instituídos na meca do cinema.





Nota do autor - As imagens e vídeo que constam neste texto foram retiradas da Internet

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