No
cinema existe uma tendência para o ocidente ir "roubar" ideias e
filmes ao oriente. No caso de "Ran" foi o contrário.
A
acção passa-se no séc. XVI no Japão onde um senhor feudal decide dividir os
seus territórios pelos três filhos, originando
rivalidades entre eles e que vai conduzir a uma destruição sem
precedentes.
Apesar de livremente adaptado de "O Rei
Lear" de William Shakespeare, “Ran”
não deixa de ser influênciado pela peça do dramaturgo inglês: em ambos temos um
senhor de guerra envelhecido que decide dividir o seu reino entre os seus
descendentes. No filme Hidetora tem três filhos (Taro, Jiro e Saburo) que
correspondem ás três filhas de Lear (Goneril, Regan e Cordélia) na peça; também
em ambos, o senhor da guerra, insensatamente, por uma questão de orgulho, bane
todos aqueles que se lhe opõem; ambos terminam, no entanto, com a destruição
completa da familia, incluindo o Senhor.
No entanto existem também algumas
diferenças cruciais entre a peça e o filme. “Rei Lear”é uma peça sobre o
sofrimento desnecessário e a personagem de Lear é, no minímo, um idiota.
Hidetora, por seu lado, foi toda a vida um guerreiro cruel que matou, sem
piedade, homens, mulheres e crianças, para atingir os seus fins. Em “Ran”, a
personagem de “O Idiota” tem um papel mais activo do que na peça. As
personagens de “Lear” não têm passado, enquanto que Kurosawa se preocupou em
dotar as suas personagens dum passado de dor e sofrimento, muito dele infligido
por Hidetora, especialmente o de Lady Kaede, equivalente ao de Goneril, mas
muito mais complexo e importante no desenrolar do filme.
Kurosawa começou a idealizar “Ran” em meados da década de 70, depois de
ler uma parábola sobre um senhor da guerra de nome Mõri Motonari que teria
vivido no Japão Feudal, o qual tinha três filhos que lhe eram extremamente
leais e talentosos por direito próprio. Kurosawa imaginou então o que
aconteceria se eles fossem todos maus e ambiciosos. O realizador começou a escrever o
argumento pouco tempo depois de terminar
a rodagem de “Derzu Uzala – A Águia da Estepe” (1975), só então é que se apercebeu das semelhanças
com “Rei Lear” e, nas suas próprias palavras, “entendeu que as histórias de
Mõri Motonari e a peça de Shakespeare se fundiam e completavam uma na outra”.
Resolve então deixar o argumento guardado durante sete anos, enquanto pintava e
desenhava “storyboards” (esboços) de cada cena descrita no argumento. Após o
sucesso obtido com “Kagemusha – A Sombra do Guerreiro”, que o realizador sempre
considerou com um ensaio para “Ran”, através do apoio financeiro de Francis Ford
Coppola e George Lucas, que também asseguraram a distribuição do filme no
ocidente, onde viria a receber a Palma de Ouro no festival de Cannes e os
favores do público e crítica, Kurosawa conseguiu obter financiamento
junto do poderoso produtor francês Serge Silberman e pode então avançar com
“Ran”.
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Akira Kurosawa, o perfeccionista |
"Ran"
é realizado por Akira Kurosawa, o melhor e mais conhecido realizador japonês do
mundo, autor de filmes como "Os Sete Samurais" (1954),
"Derzu-Uzala- A Àguia da Estepe (1975), o já referido "Kagemusha-A
Sombra do Guerreiro"(1980), "Sonhos" (1990) ou "Rapsódia em
Agosto" (1991), e é na verdade um
grandioso épico. O perfeccionismo e o bom gosto de Kurosawa está patente em
todo o filme, desde o princípio ao fim, onde o desenvolvimento é dado pelas
imagens do céu que vão intercalando a acção (começa com uma caçada ao javali,
sob um céu azul, sem nuvens no princípio do filme e termina com ele carregado
de nuvens negras e uma paisagem desoladora onde apenas o cego sobrevive ao caos
total!), passando pelas batalhas sangrentas e filmadas com uma perfeição de
mestre, especialmente a primeira, onde o jogo de cores idealizado por Kurosawa
permite uma coreografia visual fascinante (a fabulosa sequência em que o exército de Taro,
simbolizado pelo amarelo e o de Jiro, simbolizado pelo vermelho, se separam,
junto á escadaria, para deixar passar o louco Hidetora de branco, é disso
exemplo) e onde o combate adquire uma atmosfera irreal com todos os ruídos e
sons substituídos por música, a lembrar
a batalha sobre o gelo de "Alexander Nevski" (Sergei Eisenstein,1938),
mas reforçado pelo aspecto dantesco dos planos de cadáveres amontoados.
Ao
longo do filme, Kurosawa emprega todos os métodos conhecidos: desde filmar com
três cameras em simultãneo, cada uma utilizando lentes diferentes e também
ângulos diferentes numa mesma cena . Grandes Planos em vez de “close ups”,
assim como utilizar cameras estáticas e de repente mudar para planos em camera
lenta, alterando assim o ritmo da acção para dar um efeito fílmico.
O
tema central do filme é o caos ( o “ran”, do título original, quer dizer isso
mesmo: caos, destruição) e o exemplo máximo desse mesmo caos é a ausência de
deuses, como se percebe na cena em que Hidetora visita Lady Sué, uma budista
devota e a personagem mais religiosa do filme,
a dado momento ele diz-lhe,“ Buda desapareceu deste mundo miserável” , percebemos que o caos está
a chegar e o espectador vê-lo chegar sob a forma de nuvens tipo “cumulonimbus”
que finalmente rebentam numa tempestade enraivecida durante o massacre do
castelo (Kurosawa esperou dias e dias, interrompendo a produção, até estarem reunidas
as condições meteorológicas necessárias para filmar a cena com o maior realismo
possível).
Estreado no Japão a 1 de junho de 1985, “Ran” foi recebido, de forma geral, com reacções modestas, como modesta foi a sua
prestação na bilheteira. O triunfo viria, porém, no ocidente onde era aguardado
com muita expectativa. Mesmo falhando a apresentação em Cannes, “Ran” foi um
sucesso enorme rendendo vários milhões de dólares e foi um novo fôlego na carreira do
realizador que finalmente teve o
merecido reconhecimento aos 75 anos. É fácil de perceber porque é que, no
ocidente, Akira Kurosawa era conhecido como "O Imperador", porque ele
era realmente um senhor entre os seus pares ocidentais. Muitas das sua obras
foram adaptadas por realizadores como Sergio Leone, John Sturges ou até Andrei
Konchalovski.
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Kurosawa entre dois seus confessos admiradores |
Por tudo o que atrás se disse, é um filme
notável, uma obra-prima e o último grande filme de um realizador que nunca teve o devido reconhecimento
no seu país. Mas acima de tudo, é um filme
genial.
Nota: As imagens e vídeo que ilustram este texto foram retirados da Internet
Nota: As imagens e vídeo que ilustram este texto foram retirados da Internet
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