O Tempo passa sem parar, como um rio que corre em direcção ao mar, dissipa-se nas brumas da Memória colectiva... É o Tempo que serve a memória ou é a memória que serve o Tempo?
sábado, 11 de março de 2017
Impacto Súbito – A Vingança serve-se fria
Clint Eastwood, o último dos duros de um certo cinema
que, ao longo de várias décadas, encheu as medidas a várias gerações de
espectadores, principalmente nos westerns que fez na década de 60 ao serviço de
Sergio Leone e de Don Siegel ou nos vários westerns, policiais, e outros
géneros por que passou enquanto actor e realizador, ensinou-nos que, além de se tornar
legitimamente popular, principalmente com o Inspector Harry Callahan, a sua
personagem mais famosa, conseguiu
reduzir á expressão mais simples a equação mais complexa que se possa imaginar:
um grande homem, uma grande arma, um vilão e justiça instantânea!
Na
zona da baía de São Francisco acontece um crime com contornos sexuais. O
Inspector da polícia, Harry Callahan, conhecido pelos seus métodos poucos
convencionais mas eficazes, como o seu próprio chefe reconhece, é chamado á
investigação e esta vai levá-lo á pequena cidade costeira de San Paulo, na
califórnia onde os segredos são muitos e poucos os que gostam de falar,
principalmente com estranhos. Há medida que os crimes recomeçam, Callahan vê-se
cada vez mais envolvido no mistério que os circunda e também com uma jovem
artista com quem se cruza.
Oargumento inicial, escrito por Charles B.
Pierce e Earl E. Smith, destinava-se a ser um filme para Sondra Locke, que
seria produzido por Clint Eastwood, mas acabaria por ser adaptado por Joseph
Stinson para um novo filme da série “Dirty Harry”, protagonizado novamente por
Eastwood que também acabaria por o realizar. O actor e realizador não estava
muito interessado em regressar á personagem, mas também precisava de um sucesso
que lhe anadava a fugir desde “Escape From Alcatraz – O Fugitivo de Alcatraz”
(Don Siegel, 1979), o último grande sucesso de bilheteira que obtivera. A
orientação que pretendera fazer na sua carreira, procurando outros géneros, não
tinha conseguido convencer muita gente, apesar da qualidade de alguns dos seus
filmes mais recentes, portanto, quando o argumento deste filme lhe passou pelas
mãos, Eastwood viu nele uma oportunidade de regressar a um dos seus grandes
sucessos como actor.
Logo
desde o início do filme, percebe-se que a intenção do realizador é, não apenas fazer
um “comeback” em grande de Harry Callahan uma personagem marcante do cinema
másculo e machista da década de 70, mas também quebrar as regras do género
policial na sua vertente de “thriller”, indo mais além das convenções do
género, o que o realizador consegue sem grande dificuldade e fá-lo, sem rodeios,
ao mostrar logo o assassino, ou neste caso, a assassina nos primeiros minutos
do filme. Assistimos então á execução levada a cabo pela assassina, onde, ao
contrário dos filmes anteriores da série, Eastwood baralha e dá de novo, o
assassínio não é visto, mas ouvido (numa excelente e rápida montagem em que se
vê o casal dentro do carro, a sedução assume o seu papel, a arma surge
subtilmente nas mãos dela apontada ás partes mais íntimas do homem e depois,
num plano visto do exterior do carro ouvem-se duas detonações secas como se não
quisessem interromper o silêncio da noite), logo a seguir, mostra a assassina
junto a um penhasco numa atitude quase suicida, depois volta-se lentamente e
vemos o seu rosto sereno e sem uma pinga de arrependimento pelo que acabou de
fazer.
“Impacto Súbito”, o quarto filme da série “Dirty
Harry”, é, basicamente, um filme-vingança em forma de tragédia e os motivos que
levam a essa vingança são rapidamente explicados em vários “flashbacks” (cirurgicamente
inseridos em alguns momentos-chave) que surgem ao longo do filme. Há dez anos atrás, Jennifer
Spencer e a sua irmã, Elizabeth, foram violadas por um grupo de homens, durante
uma feira. Elizabeth fica traumatizada para sempre e vive internada numa
instituição e Jennifer, que se tornou uma pintora e ocasionalmente recupera
carrousseis, não se esqueceu do que aconteceu equer vingar-se daquilo por que ela e a irmã passaram. A própria
Jennifer, apesar da frieza com que leva a cabo a sua vingança, dá ao espectador
(que desde o momento em que sabe quais são os seus motivos para levar a cabo
aqueles assassinios, está do lado dela) a ideia que quer ser detida e dá
mostras de alguma demência (a cena em que pinta o seu auto-retrato ou aquela em
que se vê ao espelho e estilhaça-o com um tiro) que parece não ter fim.
Sob a direcção de Clint Eastwood é fácil perceber que
este é visualmente o mais negro de todos os filmes da série: um vilão que é das
coisas mais sádicas com que alguma vez o detective de São Francisco se deparou
(pior ainda que “Scorpio”, o seu inimigo no primeiro filme da série); um chefe
de polícia que esconde um segredo e nada faz para acabar com a onda de crimes
que, de repente, acontece em San Paulo; a acção e violência surgem naturalmente
(assim como o aumento do número de mortes), á medida que vamos acompanhando a
investigação de Harry e a vingança de Jennifer , vamos percebendo que
rapidamente Harry acabará por identificar a assassina e, sendo um romântico
disfarçado de duro, acabará por se apaixonar por ela...mas irá matá-la?
Prendê-la...ou não? É um dilema que acompanha Harry ao longo de toda a segunda
parte do filme.
Para interpretar Jennifer, Eastwood escolheu Sondra
Locke com quem já havia contracenado em outros filmes. O ar frágil, mas ao
mesmo tempo, duro daactriz e também a
sua beleza, que não sendo estonteante, mas sim discreta, tornou-a a escolha
óbvia para interpretar o papel. O realizador aproveita o seu ar frágil para a
filmar em grandes planos ou em contraluz de forma a mostrá-la quase como um
anjo vingador e em alguns momentos consegue quase esse efeito quase na
perfeição ( a cena em que ela surge na garagem de Tyrone para levar a cabo a
sua vingança); a sua faceta vingativa, ainda que um pouco humana, vem ao de cima numa breve cena quando
Jennifer visita a irmã na instituição onde ela se encontra internada e
conta-lhe como localizou e matou um dos homens que as violaram brutalmente, Eastwood
mostra, no mesmo plano, o rosto de ambas as raparigas e, enquanto Jennifer
fala, vê-se uma subtil alteração no rosto de Elizabeth como se ela quisesse
sair daquele estado catatónico em que se encontra, mas não o faz (as lágrimas
que lhe caem rosto abaixo no último plano, desmentem a sua última intenção).
Go ahead, make my day!
“Impacto Súbito” foi o mais rentável dos filmes da
série (o filme custou cerca de 22.000.000 de dólares e, as suas receitas, só
nos estados unidos, foram superiores a 67.000.000 de dólares) e, para isso, apesar
dum argumento banal, mas sólido, onde não se perde tempo com coisas banais e
apenas se deixou ficar o melhor, da realização segura e intuitiva de Eastwood num
género onde nunca se deu mal, contribuíram definitivamente dois momentos que
valorizam em definitivo o género em que o filme se enquadra: o primeiro momento
acontece logo no início, depois de mais
umaaudiência em tribunal que correu
mal, Callahan vai a um café que está em vias de ser assaltado, o inspector não
se apercebe do que está para acontecer (ou finge que não vê?) e sai só para
voltar momentos depois e surpreender os assaltantes em pleno acto, depois do
tiroteio que se segue, Harry acaba por encurralar um dos assaltantes que segura
um refém. Com a frieza que se lhe conhece, aponta-lhe a sua “Magnum .44” de
cano longo e profere a frase “Go ahead, make my day”( literalmente, “Vá, faz-me
ganhar o dia!”) que se tornou viral daqui para a frente, muitas vezes
pronunciada, muitas vezes imitada, mas nunca igualada, a frase ganhou estatuto
de “superstar” iconográfico no universo da sétima arte. O desfecho, porém, não
será aquele que se pretendia.
O segundo momento acontece no final, quando Callahan
se vai confrontar com Mick e os seus dois companheiros, numa cena, toda filmada
de noite com o herói a fazer a sua aparição num contraluz (digno do melhor
justiceiro) homenageando o melhor Western, onde o inspector reitera, pela
segunda vez, no filme a sua frase mortífera “Go ahead, make my day” e desta vez
o resultado não se faz esperar.
Com “Impacto Súbito”, Clint Eastwood firmou os seus
créditos como realizador e, ao mesmo tempo,como já disse atrás , valorizou um género atribuindo-lhe um carácter no
qual, não apenas se valoriza a acção, como também personagens como aquele que
Sondra Locke interpreta, podem e devem ser, mais interessantes do que costumam
ser, mas também podem ser e geralmente costumam ser, mais perversos pela
crueldade das circunstâncias, do que nós habitualmente pensamos que são.
Nota: as imagens e vídeo que ilustram o texto foram retirados da Internet
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