A Guerra do Vietname deverá ter sido o acontecimento que mais marcou o cinema nas últimas três décadas do século XX. Na sua extensa filmografia, podemos encontrar os melhores e os piores exemplos dessa guerra. Mas obras marcantes, usualmente conhecidas como obras-primas, bastam apenas os dedos duma mão para as enumerar. "Apocalypse Now" é o exemplo mais marcante. É um dos filmes que vem logo à cabeça quando se fala do Vietname.
O Capitão Benjamin Willard encontra-se de licença quando é contactado para levar a cabo uma missão perigosa. Deve ir até ao Cambodja localizar e eliminar um coronel renegado das forças especiais americanas que se entronizou no meio duma tribo local. Ao longo do percurso que faz enquanto sobe o rio, Willard estuda o seu alvo e questiona-se sobre o porquê da sua escolha.
O Cor.Lucas explica a missão a Willard |
Há uma cena logo no inicio, onde nos é apresentado o tema, à volta do qual girará todo o filme: É a cena em que Willard é levado ao comando, onde lhe é explicada, pelo Coronel Lucas (Harrison Ford num papel secundário e discreto), a missão que vai levar a cabo; estão presentes além de Lucas, um civil de nome Jerry que se percebe pertencer aos serviços secretos americanos, e o General Corman (G.D.Spradlin); a dado momento, Corman diz para Willard "...porque existe um conflito no coração de cada ser humano entre o racional e o irracional, entre o bem e o mal...e o bem nem sempre triunfa (...)...todo o ser humano tem o seu ponto de ruptura...você e eu temos...Walter Kurtz atingiu o seu e óbviamente enlouqueceu..." e é precisamente sobre este conflito permanente entre o racional e o irracional que "Apocalypse Now" caminha.
Desde o seu inicio, com as imagens de destruição, o som das pás dos helicópteros aos quais se sobrepõe o tema "The End" dos "The Doors" e que lentamente se vão dissolvendo no som e na imagem duma ventoinha de tecto de um quarto de hotel, até às imagens finais de um Willard completamente transtornado pelo seu acto, de destruição e da imagem final de um ídolo sobre a qual se houve uma voz assombrosa a exclamar "O horror, o horror" antes do écran ficar negro e surgir o genérico final, a ténue linha entre a racionalidade do ser humano e a irracionalidade do mesmo, é perfeitamente delineada em todo o filme.
Francis Ford Coppola a pensar na solução final... |
Juntamente com a trilogia de "O Padrinho" (1972-1990), esta é outra obra-prima que Francis Ford Coppola filmou, mas a um preço que, duvido, qualquer cineasta, digno desse nome, dificilmente gostaria de pagar. Inicialmente a rodagem, que deveria demorar seis meses, demorou dois anos e meio e pelo caminho houve muita adversidade desde a mudança de actor para o papel de Willard (Coppola queria Steve McQueen que recusou, depois teve Harvey Keitel que abandonou as filmagens em conflicto com o realizador, acabou por finalmente ter Martin Sheen), as constantes alterações ao argumento, a falta de financiamento para o projecto até sets destruídos, actores hospitalizados um rol enorme de desgraças que muitas vezes fizeram perigar o projecto. A tudo isto Coppola, visionário como sempre, sobreviveu e brindou-nos com a sua visão (magnifíca) dum conflicto que mudou completamente a face da sociedade americana.
A sua mulher, Eleanor, que o acompanhou nesta verdadeira descida aos infernos, escreveu um livro, intitulado "Notes - On the making of Apocalypse Now" (1979) em forma de diário onde regista, passo a passo, os avanços e recuos do filme e produziu um documentário "Hearts of Darkness: A Filmmaker's Apocalypse" (Fax Behr e George Hickenlooper, 1991) onde é documentado com testemunhos directos de Martin Sheen, Robert Duvall, Francis F.Coppola, John Millius, ente outros, a aventura que foi filmar "Apocalypse Now".
Vagamente baseado no livro "Heart of Darkness" de John Conrad, escrito em 1901, cuja acção se passa no congo belga no final do séc.XIX. Coppola e John Millius aproveitaram a ideia-base e o nome das personagens e transportaram a acção para o Vietname. O livro seria adaptado em 1993 para televisão por Nicolas Roeg com John Malkovich e Tim Roth.
Marlon Brando e Martin Sheen |
Excepcionalmente bem realizado e interpretado por um elenco escolhido a dedo, encabeçado por um Marlon Brando que tem aqui a sua última grande interpretação, apesar de secundária pois só surge no último terço do filme, é hipnotizante e deixa-nos colados ao écran com os seus quase monólogos de um homem atormentado por tudo aquilo por que passou e que se sente grato por ser Willard quem o vem libertar; Martin Sheen, Frederic Forrest, o já citado Harrison Ford (cuja personagem, Lucas, nada mais é de que uma piscadela de olho ao amigo George Lucas), Dennis Hopper, com o seu visual acabado de sair de "Easy Rider" (Dennis Hopper, 1969), Laurence Fishburne completam o elenco onde nem falta Robert Duvall naquele que será talvez o seu melhor papel da sua já longa carreira. Bill Kilgore, conhecido como "Big Duke" (outra piscadela de olho do realizador desta vez a John Wayne o eterno cowboy do cinema), é quem vai pôr Willard a caminho da sua missão e para que isso aconteça, aproveita o facto do grupo do capitão incluir um antigo campeão de surf, ordena um ataque a uma aldeia para permitir que Willard comece a sua missão e satisfazer um capricho seu: fazer surf. Assim começa aquela que é a mais conhecida sequência de todo o filme e uma das melhores sequências de guerra da história do cinema.
Um filme técnicamente brilhante |
Técnicamente brilhante em termos de realização, fotografia, montagem, e superiormente interpretada por Duvall, a cena abre com a chegada do barco de Willard que vem ao encontro da 1ªDivisão aérea do 9ºde Cavalaria (uma piscadela de olho aos westerns do mestre John Ford) onde surge Kilgore, vestido a rigor como nos tempos do velho oeste, a falar mal e depressa, rápidamente ficamos cativos desta magnifica interpretação que foi completamente ignorada na cerimónia dos Óscares (não passou duma nomeação para o actor).
Robert Duvall no melhor papel da sua carreira |
Robert Duvall, apesar do Óscar de Melhor Actor que ganharia pela sua interpretação em "Tender Mercies-Amor e Compaixão" (Bruce Beresford, 1983), será sempre recordado por esta interpretação do militar fanático por surf. Raramente se viu um papel ser interpretado com tanta convicção e credibilidade. É um dom que só alguns têm: Absolutamente fabulosa e inesquecível. Assim como também o é a sequência do ataque à aldeia onde nem sequer falta a componente musical e onde se comprova, uma vez mais, a genialidade do realizador; ao usar "A Cavalgada das Valquírias" de Richard Wagner, Coppola encontra aquilo que precisava para completar brilhantemente a sequência: a música dá um tom verdadeiramente apocaliptíco e, porque não, demencial a uma cena já por si realista que chegue.
Esta é daquelas cenas em que a conjugação da racionalidade e da irracionalidade do ser humano se torna mais que evidente. Coppola sabia-o e mostra-nos isso mesmo, assim como o coronel Kilgore, depois de arrasar uma aldeia para ir fazer surf, não satisfeito, manda bombardear uma floresta inteira e depois de se vangloriar de mais uma das sua acções, diz, em tom de pesar, para um espantado Willard "...sabes um dia esta guerra vai acabar": terrivelmente fabulosa.
Coppola gostou tanto de fazer esta sequência que ele próprio faz uma aparição no filme (é o realizador da equipa de televisão que filma o ataque dos americanos). Esta sequência marca, de certa maneira, o fim da parte racional do filme e o triunfo, se quisermos, do bem. Daqui para a frente o tom do filme torna-se mais irracional, onde não faltam cenas a comprovar isso mesmo e onde nos apercebemos também, da verdade contida nas palavras do general Corman quando fala do eterno conflicto humano.
Apresentado pela primeira vez em Cannes, onde foi mostrada uma versão incompleta, montada (que o realizador chamou "A Work in Progress")para o certame, "Apocalypse Now" ganharia a Palma de Ouro juntamente com "O Tambor" (Volker Schlondorff, 1979) e serviria para aguçar a curiosidade do público europeu que viria a tornar o filme num dos maiores sucessos de bilheteira do ano no velho continente enquanto nos estados unidos o filme estreou rodeado de polémica devido ao tempo interminável da rodagem, não passou de um modesto sucesso.
Nomeado para oito Óscares da Academia, o filme venceria apenas em duas categorias: Melhor Som e Melhor Fotografia. recompensa pouco modesta para um filme desta envergadura, mas como as cicatrizes da guerra ainda eram muito profundas, entende-se perfeitamente este esquecimento vetado ao filme, tendo em conta que no ano anterior "O Caçador" de Michael Cimino, ganhara os prémios mais importantes da Academia e que, seis anos mais tarde, uma outra visão, esta mais pessoal, do conflicto, viria a vencer os prémios principais da Academia. "Apocalypse Now" apareceu cedo demais e ninguém entendeu o que o realizador quis fazer.
Em 2001, Francis Ford Coppola remontou o filme, acrescentando-lhe mais 50 minutos de cenas inéditas na versão normal. Não acrescentando nada de novo ao filme, esta versão serve apenas para projectar mais ainda uma visão já de si grandiosa. Se acreditarmos nas palavras do realizador quando fala desta versão a que chamou "Apocalypse Now Redux", percebemos que ainda não foi tudo dito acerca do filme.
Nota: Todas as imagens e vídeos que ilustram este texto foram retirados da Internet
É e será decididamente um dos meus filmes de sempre... Um abraço.
ResponderEliminarE voltando à carga posso dizer que o que faz o filme ainda mais extraordinário é o facto de ser um grito profundo contra a insanidade da guerra, seja ela qual for. Aqui foi o Vietname, mas o livro em que Coppola se baseou fala de outro conflito completamente diferente no espaço e no tempo.
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