O Tempo passa sem parar, como um rio que corre em direcção ao mar, dissipa-se nas brumas da Memória colectiva... É o Tempo que serve a memória ou é a memória que serve o Tempo?
Um dos grandes
truques do cinema sempre foi contar histórias simples e apelativas garantindo
sempre bons resultados junto do público e também junto de alguma crítica. Foi o
que se passou com este "Carteiro de Pablo Neruda".
Mário vive numa ilha em Itália na década de 50
do século passado, é filho de um pescador mas não se consegue adaptar aquela
vida. Graças a saber ler e escrever, ele consegue um emprego como carteiro
encarregado de levar a correspondência ao poeta chileno Pablo Neruda que se
encontra exilado naquela ilha. Com o passar do tempo os dois tornam-se amigos e
Mário pede ao poeta que o ajude a conquistar a rapariga que ele ama.
O filme é baseado
no livro “Ardiente Paciencia”, escrito por Antonio Skármeta, em 1983, com
argumento da autoria de Anna Pavignamo, Michael Radford, Furio Scarpelli,
Giacomo Scarpelli e Massimo Troisi e situa a acção na década de 50, enquanto o
livro e o filme homónimo, que o próprio Skármeta realizara em 1985, a situava
em 1970, no Chile, na Ilha Negra, onde Pablo Neruda vivia.
O primeiro
vislumbre que temos de Mario, numa cena em que ele conversa com o pai, ficamos
com a ideia de que ele deve ser deficiente mental, assim como o pai que também
nos deixa essa ideia, tal é a conversa entre ambos que não leva a lugar nenhum.
Mas logo depois, noutra cena adiante, quando Mario discute com o encarregado do
posto de correios da ilha acerca do poeta, antes de aceitar o lugar de carteiro
de Pablo Neruda, percebemos que ambos têm poucos conhecimentos sobre poesia e que afinal ele é uma pessoa normal, que foi
criado numa ilha cuja única ocupação dos
seus habitantes é a pesca e onde não
existe nada de importante que se possa falar. Mas tudo isso está para mudar com
a chegada de Pablo Neruda, o poeta chileno que veio para o exílio e torna-se
uma atracção na ilha, os ílhéus, apesar de não saberem nada de poesia,têm alguém a quem não negam nada, Neruda,
apesar de estar exilado,encontra a paz
que não tem no seu Chile natal e Mario,
finalmente, encontra alguém que lhe ensine como falar com raparigas, e que
existe algo mais do que a vida naquela ilha tranquila, de gente simples onde as
mudanças e as ideia novas tardam a chegar, se é que alguma vez chegarão.
A relação entre ambos
cresce lentamente. O poeta é um homem calmo, que vive com uma mulher (não
chegamos a saber se é a sua esposa ou não), Mario percebe que eles estão
apaixonados, então, fascinado pela personalidade do poeta aliada á sua fama e a
avultada correspondência que recebe, principalmente de mulheres, ele utiliza
todos os meios ao seu alcance para ganhar a amizade de Neruda, incluindo o
conseguir arranjar um livro de poemas dele e pedir-lhe que o autografe, o que o
poeta faz, indiferentemente, escrevendo “com amizade, Pablo Neruda” (como se
fosse mais um dos seus leitores), o que deixa o pobre carteiro abatido, pois o
autógrafo não está nem sequer personalizado! Como é que Mario poderá alguma vez
impressionar as mulheres (principalmente Beatrice Russo, a jovem por quem ele
está apaixonado, interpretada pela belíssima ex-modelo e actriz Maria Grazia
Cucinotta), se o seu autógrafo não for personalizado?! O carteiro procura a
ajuda de Neruda para que este lhe ensine palavras para poder escrever um poema
para a sua amada Beatrice, para poder comunicar melhor com ela (e ultrapassar a
sua timidez).
Maria Grazia Cucinotta
Há ainda uma cena que também é marcante, nomeadamente no que diz
respeito a Mario; alguns meses depois de o poeta ter deixado o seu exílio
naquela ilha mediterrânea, o carteiro recebe um recorte dum jornal onde Neruda
fala da vida de solidão que manteve entre as gentes simples do mundo. O rosto
de Mario contrai-se ao ler aquelas palavras do seu ídolo e essa contracção é
suficiente para mostrar que ele já não é tão “simples” quanto o poeta diz. São
estas pequenas cenas que fazem os filmes grandes!
Realizado por Michael Radford, que já nos dera
o profético "Nineteen Eighty-Four - 1984" (1984) com John Hurt e
Richard Burton no seu derradeiro papel no cinema ou o "The Merchant of Venice
- O Mercador de Veneza" (2004) com Al Pacino e Jeremy Irons, que constitui
uma das melhores adaptações de Shakespeare ao grande écran, que consegue com "O Carteiro de Pablo Neruda" fazer
um filme simples, misto de comédia e
romance, digno de alguns clássicos na melhor tradição do cinema italiano. Tudo
graças a uma realização competente que tira o melhor partido dos locais de
filmagem e também do trabalho dos actores.
Massimo Troisi & Philippe Noiret
Philippe Noiret tem aqui, a par de “La Grande
Bouffe – A Grande Farra” (Marco Ferreri, 1973), oudo fabuloso“Nuovo Cinema Paradiso – Cinema Paraíso” (Giuseppe Tornatore, 1988), um
dos melhores trabalhos da sua longa carreira. O seu Pablo Neruda é perfeito
graças à semelhança do actor com o verdadeiro poeta. Massimo Troisi teve aqui o
papel da sua vida. Aliás, segundo o próprio realizador, a dedicação do actor ao
filme foi total, nem mesmo o problema de saúde que o afectava o impedia de
trabalhar (Troisiadiou uma operação ao
coração, para poder completar a sua participação no filme) . Infelizmente, não
viveu o suficiente para ver o resultado do seu esforço, pois faleceu
exactamente 12 horas depois do fim das filmagens, de paragem cardíaca. Ficou a
interpretação inesquecível.
Juntos, os dois
actores conseguem transformar a simplicidade intencional do filme numa
verdadeira meditação sobre o destino, tacto, diplomacia e poesia. Pode até
dizer-se que, se as circunstâncias fossem um bocadinho diferentes, Mario
poderia ser ele mesmo o poeta, Neruda o carteiro, apesar desta ser uma ideia que
ocorra mais facilmente a Mario.
"O Carteiro de Pablo Neruda" foi um
grande sucesso de bilheteira a nivel mundial. Vencedor de inúmeros prémios e nomeado
para cinco Óscares da Academia, incluindo Melhor Filme, Melhor Actor e Melhor
Realizador, mas venceu apenas na categoria de Melhor Banda Sonora.
É um filme sobre a amizade, sobre como é que
duas pessoas de mundos completamente diferentes se relacionam e como é que esse
relacionamento muda as suas vidas radicalmente. Poder-se-ia dizer que a relação
de amizade entre o poeta e o seu carteiro, um simples homem de poucos
conhecimentos, poderia ter sido mais desenvolvida e aprofundada, mas a beleza
do filme reside precisamente na sua calma e pacatez.
Nota: as imagens que vídeo que ilustram o texto foram retiradas da Internet.