Uma das grandes
características que define os realizadores que formaram
a chamada geração dos “Movie Brats”, que
surgiu nas décadas de 60 e 70 é o conhecimento cinematográfico e a afeição com
que o tratam. São uma segunda geração de artistas, os sucessores espirituais
dos realizadores pioneiros, como D.W.Griffith, Cecil B.DeMille, Howard Hawks,
King Vidor, Alfred Hitchcock, Charlie Chaplin, entre muitos outros. Muitos
deles nasceram depois da linguagem e as convenções do cinema terem sido
estabelecidos, o que não impediu que alguns deles se insurgissem e questionassem
essas mesmas fundações. Mas,
para o
poderem fazer de um modo efectivo, eles tinham que estar bem preparados , com
bons conhecimentos da história do cinema, trabalhos importantes e
personalidades marcantes. Estes conhecimentos pormenorizados são comuns entre
os que realizadores que pertencem á segunda geração, os primeiros que
beneficiaram de uma completa educação cinematográfica, mas, de todos esses
realizadores, nenhum é mais versado na sétima arte do que Martin Scorsese.
Já se sabe que
Martin Scorsese é um grande realizador, tardiamente reconhecido pelos seus
pares, e é também um grande conhecedor do cinema. Grande parte dos seus anos de
formação foram passados a consumir vorazmente tudo aquilo que estreava nos
cinemas, o que contribuiu para o cinema do realizador seja preenchido com
referências, homenagens e técnicas adquiridas com os seus homenageados. Quando foi
convidado pelo Instituto de Cinema Britânico, para dar forma a este
documentário, o realizador não hesitou em aceitar.
Feito em 1994
aquando da celebração do centenário do cinema, este documentário constitui uma
visão única e, nalguns aspectos, pessoal do realizador. No papel de
apresentador e narrador, com a ajuda de entrevistas e clips de filmes, ele fala
da importância e da influência de alguns dos nomes maiores da cinematografia
americana e dos seus filmes na sua carreira de cineasta. Mostrando o papel do
realizador como um contador de histórias, um ilusionista, um iconoclasta, ou
até como uma espécie de contrabandista envolvido na eterna guerra do “puxa e
empurra” com os estúdios. Através desta forma de trabalho, ele apresenta-nos o
desenvolvimento da sétima arte desde o seu nascimento até ao final dos anos 60:
o início com os filmes mudos, a transição para o sonoro e para a cor e
finalmente o advento do “Cinemascope”, está um pouco de tudo, ao mesmo tempo,
Scorsese foca-se nos géneros que mais o influenciaram: o Western, os filmes de
gangsters e também o musical, gastando algum tempo a falar do desenvolvimento
desses mesmos géneros e é nesse tempo que o realizador faz a ponte entre esses
filmes e alguns dos seus contemporâneos de geração como George Lucas, Francis
“Ford” Coppola, Brian DePalma, Clint Eastwood, com alguns realizadores mais
velhos como Arthur Penn, Billy Wilder, Samuel Fuller ou John Cassavetes.

O seu género
favorito, diz-nos a dado momento do documentário, é o filme de gangsters,
género do qual vemos clips de 1915 do filme “The Regeneration” de Raoul Walsh;
“Scarface – O Homem da Cicatriz” de Howard Hawks; “The Roaring Twenties –
Heróis Esquecidos” de Raoul Walsh com que o realizador americano encerra o
capítulo do filme dos gangsters
dizendo
que por esta altura que “os gangsters se haviam tornado numa figura trágica, de
certa maneira, eram uma antítese do próprio sonho Americano”. No final deste
capítulo, é fácil perceber porque é que o realizador afirma que este é o seu
génerp preferido. Ele próprio diz que a arte dos filmes de gangsters
está na génese dos seus filmes “Mean Streets
– Os Cavaleiros do Asfalto” (1973) , “Goodfellas – Tudo Bons Rapazes” (1990) e
“Casino – Casino” (1995).
“A Viagem Pessoal”
oferece ao espectador uma visão diferente, quiçá, algo original e transmite,
através das palavras do seu apresentador, algumas lições para o futuro: através
de diversos clips (alguns raros) , ele chama a atenção para o trabalho de
alguns realizadores considerados obscuros (Como Abraham Polonsky que fez “A
Force of Evil”, que Scorsese considera como um dos filmes que mais o influenciou) ou “Leave her to
Heaven” um filme sobre o ciúme ao ponto de se cometer um crime por causa dele,
e recupera alguns trabalhos menos conhecidos de outros como Jacques
Tourneur e o seu filme de terror, série
B, “I Walked with a Zombie” ou ainda
“Bigger than Life” que Nicholas Ray realizou e é um dos primeiros filmes
americanos a abordar a temática da dependência
Porque “A Viagem Pessoal”
é maioritariamente constituída por clips (ou excertos) de filmes antigos, pouco
material original é incluído no documentário, a não ser as entrevistas, mas
mesmo assim, Scorsese, não dispensou algumas das presenças habituais nos seus
filmes: Thelma Schoonmaker, na supervisão da montagem; Saul Bass responsável
pelos intertítulos manuais que separam cada capítulo e até Elmer Bernstein numa
banda sonora tranquila e nostálgica baseada no piano.

Mas não é só a
participação de alguns dos seus colaboradores que torna este documentário um
trabalho Scorsesiano. A sua assinatura é evidente e fundamental no conceito da
celebração do cinema americano dentro do próprio cinema. A sua apresentação é
totalmente preenchida pela sua longa paixão pelos filmes e então ele, como
narrador/apresentador, consegue penetrar no mais íntimo dos espectadores e
falar-lhes da importância da herança cinematográfica que os estados unidos
criaram. É um retrato extremamente íntimo o que realizador faz do trabalho
daqueles que o precederam e o simples facto dele não fazer qualquer comentário
ao seu trabalho ou ao dos seus contemporâneos no documentário, mostra o
respeito e a dignidade com que o realizador encara o seu trabalho e posiciona-o
como um potencialmente eminente historiador do cinema e o guardião desta
herança para o mundo.
Talvez por isto e
também pelo sucesso obtido quando o documentário foi exibido, levou o
realizador, anos depois, a repetir a experiência, mas desta vez no cinema
italiano.
Foi em 1999 que o
realizador se sentiu compelido a mergulhar nas suas raízes italianas devido ás
recordações que os seus avós italianos que emigraram da Sicília para virem
viver nos estados unidos, lhe transmitiram e foram também os filmes que via na
sua casa, em “Little Italy” na cidade de nova York onde o realizador foi criado
que lhe permitiram entender os valores e a cultura que sempre lhe tentaram
transmitir.

“My Voyage to
Italy” ou “Il Mio Viaggio in Italia” como se chamou originalmente começa com o
realizador a dizer que se não tivesse visto os clássicos italianos, ele seria
uma pessoa completamente diferente. Com um ar profundamente nostálgico, filmado
num preto-e-branco intenso, o olhar directo na camera, ouvimos o realizador
dizer “eu vi estes filmes…eles tiveram um grande impacto na minha
pessoa…deveriam ver estes filmes” . O objectivo do realizador é inspirar-nos a
ultrapassar um certo preconceito que exista no espectador contra algum cinema
europeu, nomeadamente, o cinema italiano e deixar-se envolver na experiência, o
que, mesmo ao longo das quatro horas que dura o documentário, é plenamente
conseguido.
“A Minha Viagem a
Itália” segue o mesmo formato que “A minha Viagem Pessoal ao Cinema Americano”,
intercalando comentários e memórias pessoais e outras recordações com excertos longos ( alguns duram entre 10 a 15 minutos)
de diversos clássicos italianos, editados com uma precisão tal que o espectador
não consegue descolar o olhar das imagens do écran e os ouvidos das palavras do realizador.
Focando a sua
atenção no cinema italiano nas duas décadas seguintes ao final da
2ª guerra mundial, Scorsese explica
convincentemente que o cinema é inseparável dos aspectos da vida,
principalmente no que toca ao neo-realismo italiano que consegue quebrar as
barreiras entre o documentário e a ficção, nos excertos dos filmes “Rome – Open
City – Roma, Cidade Aberta” de Roberto Rossellini e em “Bicycle Thief – O
Ladrão de Bicicletas” e “Umberto D. – Humberto D” ambos de Vittorio De Sica, o
espectador sente-se como se a vida se vivesse no pior dos tempos. Conforme se
vai mergulhando mais no documentário, este vai evoluindo para uma sensibilidade
mais moderna com tendência para secularizar uma cultura crescente. Ao analisar
o neo-realismo italiano, Scorsese faz grandes distinções entre os
trabalhos
de Rossellini, que deixava a
brutalidade dos factos falarem por si, e De Sica, que de ex-actor dos anos 30,
se tornou realizador e um mestre no trabalho das emoções.
O documentário
divide-se em duas partes. A primeira consiste, como já foi dito, num estudo
profundo do neo-realismo através das visões, de ruína, pobreza e desespero
transmitidas por algumas das obras mais marcantes de Rossellini e De
Sica e o seu impacto no universo
pós-guerra. A segunda parte, que não é tão intensa como a primeira, analisa os
trabalhos de Luchino Visconti e a sensibilidade duma realidade quase operática
que trouxe ao cinema italiano. Frederico Fellini, o mais famoso e internacional
dos realizadores italianos, cuja filmografia emergiu bem do meio do neo-realismo,
o seu “La Dolce Vita – A Bela Vida” é reconhecidamente, o ponto de viragem para
a mudança. Scorsese também não se esquece de referir Michelangelo Antonioni
como um dos grandes arautos do modernismo italiano.

No entender do
realizador norte-americano, a grande viragem para o modernismo, acontece com os
filmes “L’Avventura – A Aventura” e com “L’Eclipse – O Eclipse”, ambos de
Antonioni, cujas personagens estão fechadas dentro do seu próprio isolamento em
paisagens que perderam a capacidade de se alimentar espiritualmente.
Inevitavelmente, Scorsese termina o documentário com Fellini e a sua
obra-prima, “8 1/2 – Oito e Meio”, uma espécie de investigação fantasmagórica do
frenesim em que se tornou o seu processo criativo após o sucesso de “La Dolce
Vita”. O realizador considerou “8 ½ “ o filme que, pessoalmente, mais o
influenciou.
Com
“A
Minha Viagem Pessoal
ao Cinema
Americano” e com “A Minha Viagem a Itália”, Martin Scorsese
analisa, ao longo das mais de oito horas que
duram ambos os documentários, ainda que superficialmente, uma
grande parte da história do cinema americano
do século XX
e também as bases que
estiveram na origem do nascimento do Neo-Realismo
na Itália e como esse movimento influenciou a
maneira de filmar na europa e
também nos
estados unidos.
Nota: as imagens que ilustram este texto foram retiradas da Internet