O Tempo passa sem parar, como um rio que corre em direcção ao mar, dissipa-se nas brumas da Memória colectiva... É o Tempo que serve a memória ou é a memória que serve o Tempo?
Que Francis
“Ford” Coppola era um nome incontornável na história da Sétima Arte, já se
sabia, que era um visionário que andava sempre alguns anos há frente da
indústria, também já se sabia e que por causa dessa sua visão futurista,
afundou a sua produtora, viu fecharem-se-lhe portas de outros estúdios, teve de
trabalhar quase de graça a fazer “filmes-encomenda” para poder recuperar do
grande fiasco financeiro que foi “One From the Heart – Do Fundo do Coração”
(1981), o filme mais pessoal e visionário da sua longa carreira e que foi um
dos responsáveis por uma nova geração de actores e actrizes que viriam a marcar
o cinema nas últimas décadas do século XX. Decisivos, não só na responsabilidade
que tiveram em mostrar os novos talentos emergentes, como também na carreira do
realizador, foram os “filmes encomenda” “TheOutsiders – Os Marginais” (1983) e “Rumble Fish – Juventude Inquieta”
(1983) que realizou.
O filme
passa-se algures na década de 50, na cidade de Tulsa, no Oklahoma e centra-se
na relação entre dois irmãos. Um, “Motorcycle Boy”, chefe de gang, referenciado
pelas autoridades e pelos jovens, que, depois de regressar duma viagem,
pretende viver uma vida mais calma e pacifica. O outro, mais novo, é “Rusty
James”, exaltado e delinquente, idolatra o irmão e aspira ser tão temido como ele.
S.E.Hinton, Matt Dillon e Mickey Rourke
Coppola
sentiu-se atraído para o romance de S:E. Hinton (de quem já adaptara para o
cinema “Os Marginais”) por causa da identificação pessoal - um irmão mais novo
que idolatra um irmão mais velho e mais inteligente - que encontrou em “Rumble
Fish” – que espelhava bem o seu relacionamento com August, irmão mais velho do
realizador (a quem dedica o filmee cuja
dedicatória aparece como último crédito no genérico final). Coppola e Hinton
escreviam o argumento nos dias de folga da rodagem de “Os Marginais”.
Sensivelmente a meio da rodagem foi quando o realizador decidiu que queria usar
a maior parte da equipa de rodagem, alguns actores e actrizes, permanecer em
Tulsa e rodar “Rumble Fish” logo a seguir.
A Warner
Bros. Não ficou satisfeita com a versão final de “Os Marginais” e retirou-lhe
cenas, (que seriam depois incluídas na versão do realizador de 2005), remontou
o filme e estreou-o no circuito comercial e recusou financiar e distribuir
“Rumble Fish”.Apesar de não ter
financiamento, Coppola não recuou e, durante duas semanas de ensaios, gravou a
maior parte do filme em vídeo e mostrou essa versão ás equipas técnica e
artística. Em julho de 1982, com a rodagem a decorrer há seis semanas, Coppola
assinou um contrato com a Universal Studios que lhe assegurou o financiamento e
a distribuição comercial do filme. A rodagem continuou até meio de setembro
desse ano e, pela primeira vez em muitos anos, dentro do orçamento e do prazo.
Para o
elenco, Coppola trouxe Matt Dillon e Diane Lane, que já vinham de “Os
Marginais”. O primeiro é Russell James, conhecido como “Rusty James”, sonha com
o tempo em que existiam gangs que dominavam as ruas. Dillontem uma interpretação ao nível da que tivera
no filme anterior onde interpretava Dallas Winston, um jovem marginal que
queria manter os amigos fora daquele mundo. A segunda é Patty, namorada de
Rusty, que tenta trazê-lo para a realidade existente e não aquela com que ele
sonha. A bonita actriz, que em “Os Marginais” interpretara Cherry Valance, uma
“Soc” (menina rica), que se apaixonava pelo “Greaser”Pony Boy Curtis. Em “Rumble Fish”, mostra que
tem talento e a sua interpretação justifica porque é que viera a tornar-se uma
das actrizes preferidas de Francis“Ford”Coppola.
Aos dois
junta-se Mickey Rourke, como “Motorcycle Boy”, uma personagem carismática,
idolatrado pelo irmão e odiado pelo chefe da polícia. O actor, ainda no
princípio daquela que se julgava vir a ser uma promissora carreira, está á
altura da responsabilidade que carrega ao longo do filme. Os seus maneirismos, tanto a falar como a
agir, transmitem uma sensação de calma aparente ao longo de todo o filme, mas
que sabemos não existir. Pertence-lhe a ele a melhor fala de todo o filme na
cena em que conta ao irmão como foi a sua viagem á califórnia, a dado momento,
Rusty, pergunta-lhe se ele viu o mar. Ele responde que não. O irmão pergunta
porquê e ele responde que a califórnia se meteu pelo meio. É um diálogo
absolutamente fascinante, este, assim como aquele em que “Motorcycle Boy”
resolve ir libertar os peixes siameses-lutadores alegando que eles se
comportariam de maneira diferente se estivessem no rio, livres, o que acabará
por causar a sua desgraça. Ainda no elenco salientam-se as interpretações de
Dennis Hooper, Nicholas Cage, Christopher Penn, Laurence Fishburne, Tom Waits,
William Smith e Sofia Coppola e S.E.Hinton, a autora do livro, numa breve
aparição, tal como já fizera em “Os Marginais, no papel da prostituta que
interpela Steve (Vincent Spano) na rua, quando os três se vão divertir para a
cidade.
Durante a
pré-produção, Coppola perguntou a Stephen H. Burum, o director de fotografia, que
também já trabalhara em “Os Marginais”, como é que ele queria fazer o filme e
ambos concordaram que se queriam fazer um filme a preto-e-branco, aquela era,
talvez, a única possibilidade de o fazer.
O filme
torna-se notável pelo seu estilo “Avant-garde”, admiravelmente filmado a
preto-e-branco, usando uma composição cinematográfica que alude á “Nouvelle
Vague” francesa dos anos 60, ao preto-e-branco usado por Orson Wells nos seus
filmes como realizador e ao cinema alemão expressionista dos anos 20, como se
pode perceber pelo uso extensivo de ângulos oblíquos, composições exageradas e
uma abundância de fumo e nevoeiro. O realizador quis aproveitar a cidade de
Tulsa, e as zonas suburbiais desertas da cidade, filmou muitas vezes de câmara
na mão para transmitir ás audiências uma sensação de desconforto. Também mandou
pintar sombras nas paredes dos sets de modo a dar-lhes um toque ameaçador.
No filme, as
personagens encontram-se, lutam, falam, namoram, bebem e, por vezes, morrem.
Tudo isto é tratado de um modo estilizado como só Coppola poderia fazer e isso
fica demonstrado em duas cenas: A cena do sonho da morte de Rusty James em que
este sai do seu corpo e flutua sobre a cidade enquanto escuta o que dizem sobre si; a outra cena é aquela em que os dois
irmãos estão na loja dos animais de estimação a conversar enquanto olham para um
aquário onde vêem dois peixes siameses-lutadores coloridos a lutar (o “Rumble
Fish” que dá título ao filme). Para misturar a fotografia a preto-e-branco com
as imagens coloridas, Stephen H.Burum filmou os actores a preto-e-branco,
depois projectou as suas imagens num écran, puseram o aquário com os peixes em
frente do projector e filmaram tudo a cores. Ahábil montagemde BarryMalkin, colaborador habitual do realizador,
encarregou-se do resto. Se se ver bem esta cena, percebe-se o simbolismo que
Coppola quis demonstrar com ela: as cores da bandeira americana (um peixe é
azul, o outro é vermelho), o ambiente da adolescência e segurança (representado
pelo aquário), depois, ao longo da cena, vem a vontade de lutar e de afirmação
e o perigo que acontece se somos retirados do nosso meio ambiente. Peixes siameses-lutadores
que substituem os jovens. Original e resulta.
A passagem
do tempo, que acontece mais rápido do que as personagens se apercebem, é-nos
dada através da fotografia em movimento de nuvens no céu e de inúmeros relógios. foi inspirada no
documentário “Koyaanisqatsi” (Godfrey Reggio, 1982) que Coppola produziu. A
fotografia a preto-e-branco também serve para mostrar como o daltónico “Motorcycle
Boy” vêo mundo que o rodeia.
Quando
estreou, “Rumble Fish – Juventude Inquieta”, foi um fracasso de bilheteira. Dos
10.000.000 de dólares investidos, o filme fez pouco mais do que 2.500.000 de
dólares nos estados unidos. Na europa, principalmente em frança, onde o
realizador é admirado, o filme foi um grande sucesso. Apesar de ter dividido a
crítica, com uma parte dela a elogiar a obra e o realizador e outra parte a
arrasar o filme e a criticar o estilo utilizado por Coppola em material tão banal. Nada disto abalou o
realizador que tem o filme como um dos seus favoritos e foi premiado no
Festival de Cinema de San Sebastian onde ganhou os dois prémios mais
importantes. Ao longo do tempo “Rumble Fish”,tem sidoapesentado como um filme
revolucionário em termos de estilo e técnica, que só em anos recentes tem sido
compreendidoeganhou, desde então, um novo estatuto e é
hoje tido como um filme de culto.
Francis
“Ford” Coppola considerou “Rumble Fish – Juventude Inquieta” um filme de arte
para adolescentes, passível de ter ou não impacto entre os jovens. Fácil de se
detestar por não mostrar a temática como habitualmente a vemos; ou fácil de se
adorar se formos atrás do charme que emana do trabalho experimental eestilizado que exibe, montado sobre uma
história de delinquência e bandos de rua, “Rumble-Fish” acaba por ser um filme
excêntrico, ousado e original. Quem, senão Coppola, poderia fazer este filme?
Ou melhor, quem, senão Coppola, quereria fazer um filme assim?
Nota: as imagens e vídeo que ilustram o texto foram retirados da Internet.