O Tempo passa sem parar, como um rio que corre em direcção ao mar, dissipa-se nas brumas da Memória colectiva... É o Tempo que serve a memória ou é a memória que serve o Tempo?
Bob Fosse (1927-1987), coreógrafo e
realizador, foi um nome incontornável no
cinema, particularmente no cinema Musical onde algumas das mais geniais
coreografias sairam da sua cabeça.
Quando se tornou realizador, foi com o seu segundo filme, “Cabaret- Adeus
Berlin” (1972), um musical já fora de tempo, que recebeu alguns dos maiores prémios da sua longa carreira, incluindo o Oscar de Melhor Realizador, um dos
oito que o filme ganhou. Até á data, é o único realizador a receber os três
maiores prémios da indústria no mesmo ano:
Oscar, Emmy e Tony. “All That Jazz - O Espectáculo vai Começar”, realizado em 1979, é um filme semi-autobiográfico, podendo mesmo ser considerado como “o retrato do artista em vida”.
O coreógrafo Joe Gideon é um “workaholic” e um
mulherengo incorrigível. É com um cigarro na boca, anfetaminas e outras drogas
que tenta, ao mesmo tempo, montar o seu filme “The Stand Up” a tempo e horas da estreia e encenar
e coreografar um espectáculo para a Broadway. Um dia sofre um ataque cardíaco
quase fatal e, enquanto conversa com Angelique, um anjo duma beleza fatal, revê
episódios da sua vida.
Apesar de ser uma fantasia musical, “All That
Jazz”, como disse atrás, tem qualquer coisa de autobiográfico. Baseando-se num
episódio real que aconteceu a Bob Fosse
em 1973. Estava o realizador a trabalhar a conta-relógio na montagem do seu
filme “Lenny” , de modo a tê-lo pronto para estrear na data prevista, ao mesmo
tempo que coreografava e encenava “Chicago”, uma peça para a Broadway, quando sofreu um ataque
cardíaco que o fez repensar a sua vida dali para a frente.
O fabuloso início do filme
Visualmente brilhante, o filme revela muito do
que foi a carreira de Bob Fosse como
dançarino, coreógrafo e realizador. Homem de excessos: álcool, cigarros, drogas
(leves e duras), mulheres; sempre a trabalhar no limite, mas, acima de tudo, um
perfeccionista nato, Fosse (ou seu alter-ego Joe Gideon?) criou, neste filme,
alguns dos mais bizarros e extravagantes números musicais de que há memória: logo desde o início, ao
som de “On Broadway”, um sucesso de George Benson, um fabuloso “plongée” mostra uma figura,
ajoelhada, de costas para a câmera, vestida de negro, a observar uma multidão
de jovens dançarinas e dançarinos durante uma audição em cima dum palco: é o
encenador, coreógrafo e realizador Joe Gideon que, sempre com o seu cigarro no canto da boca, a observar tudo e todos, vai seleccionando
aqueles que lhe parecem ser os melhores dançarinos. A partir deste excepcional início, Fosse, com
seu único “know how”, coloca a câmera onde quer e como quer e, como diz o seu alter-ego Joe Gideon “It’s
Showtime Folks!”.
Os números musicais, entrecortados com a
conversa de Gideon com a bela Angelique sobre a vida, profissional e familiar,
do artista (uma piscadela de olho a “O Sétimo Selo”, de Ingmar Bergman),
sucedem-se a um ritmo alucinante, tal como foi a vida de Bob Fosse e do seu
alter-ego. Numeros como “Air-otica”, “Jaeger & Gideon”, ou o fantástico
final com “Bye Bye Life” são o resultado de uma montagem
brilhante, perfeita mesmo, cada fotograma está exactamente onde deve estar, iluminado
por cores sóbrias que na maior parte das cenas se fundem em negros e brancos.
O
realizador faz uso brilhante das lentes zoom (quando, na altura, poucos eram os
que sabiam fazer uso delas), filmando cenas em que se começa por ver apenas um
dançarino ou dançarina em palco e logo começa uma variedade de corpos a passar
pelo primeiro a acompanhá-lo no número, deixando o espectador sentir aquela
sensação intransponível do coreógrafo/encenador
de não saber quais serão aqueles que
iram dançar no espectáculo, além de
transmitir também aquela sensação de que
estamos perante algo que se passa, não na realidade, mas sim na cabeça de
alguém que está ás portas da morte (até aqui, Bob Fosse foi insuperável na
previsão da própria morte, de ataque cardíaco em 1987!), tornando todo o filme,
do meio para o final, algo depressivo, mas cada vez mais brilhante. Toda a sequência final, quando Joe Gideon
sofre aquele que será o ataque cardíaco fatal que lhe causará a inevitável
morte, passa-se inteiramente na sua mente e ele, deitado na cama do hospital,
ligado por tubos e a respirar artificialmente, “vê” o seu alter-ego terminar o
seu trabalho, encenar e coreografar os números que faltam no seu espectáculo, e
prepará-lo para o grande final, permitindo que ele se despeça da vida, dos seus
familiares mais próximos (ex-mulher e filha), a namorada, amigos e
colaboradores, em grande com o fabuloso
“Bye Bye Life”.
Fantásticas e não menos fabulosas, aliás,
contribuem, e muito, para abrilhantar o filme,
são interpretações de Jessica Lange e, principalmente, de Roy Scheider.
Lange, uma antiga modelo que descobriu o cinema em 1976 com “King Kong” (John Guillermin) , tem aqui
o seu primeiro papel de destaque ao interpretar Angelique, uma espécie de anjo,
dona de uma beleza fatal acentuada pelo
seu vestido branco e o seu chapéu de abas largas, com quem Gideon conversa ao
longo do filme e parece ser a única pessoa que o compreende. A sua
interpretação está ao nível de outras com que a actriz nos brindaria em anos
futuros e que lhe trariam diversos prémios, incluindo dois Oscares da
Academia como Melhor Actriz Secundária
em “Tootsie – Quando Ele era Ela” (Sidney Pollack, 1982) e como Melhor Actriz
Principal em “Céu Azul” (Tony
Richardson, 1994). Pelo meio não a conseguimos esquecer em “O
Carteiro Toca Sempre Duas Vezes” (Bob Rafelson, 1981) onde dá vida a uma
mulher adúltera que seduz Jack Nicholson.
It's showtime, folks!
Se Jessica Lange seduz o espectador, Roy
Scheider foi a escolha certa para o
papel de Joe Gideon. De estatura e
aspecto semelhante a Fosse, o actor, depois de vários anos em papéis
secundários, “The French Connection – Os Incorruptíveis contra a Droga”
(William Friedkin, 1971), o multi-premiado policial, deu-lhe uma nomeação para
o Oscar de Melhor Actor Secundário, ganhou destaque em “Jaws – Tubarão”(1975), o
mega-sucesso de Steven Spielberg e foi esta
sua ascensão repentina, continuada em “Jaws II – O Tubarão 2” (Jeannot Swzarc,
1978), que o conduziu directamente a Bob Fosse e ao seu alter ego. Scheider agarrou e interpretou brilhantemente o papel (diz-se que a sua sofreguidão pelo
papel foi tal que o actor aprendeu a cantar e dançar de propósito para o papel), cantando e dançando tão bem que,
por vezes, é difícil distinguir se estamos perante o actor ou o modelo que
serviu de inspiração a tão fabulosa interpretação. Foi, sem dúvida, o melhor
papel da longa carreira do actor.
“All That Jazz – o Espectáculo vai Começar”
surgiu numa época em que o musical já
havia desaparecido como género grande. Muitas vezes comparado, pela sua estrutura, a “8 ½ “ , de Federico Fellini,
um filme autobiográfico do mestre Italiano-prima, também ele recheado de
elementos fantásticos, comparação essa que Fosse sempre negou.
O filme estreou em dezembro de 1979, ainda a
tempo de entrar na corrida para os Oscares, conseguindo nove nomeações,
incluindo para Melhor Filme, Melhor Realizador e também para Melhor Actor,
venceria apenas em quatro categorias
técnicas. O filme foi um enorme sucesso de bilheteira e venceria ainda inúmeros
prémios em festivais um pouco por todo o mundo. Na Europa, em 1980, seria
exibido no Festival de Cannes e obteria a consagração máxima ao vencer a Palma
de Ouro, “ex-aequo” com “Kagemusha – A Sombra do Guerreiro” do mestre Japonês
Akira Kurosawa.
Bobo Fosse e o seu alter-ego Joe "Roy Scheider" Gideon
Em 2001, “All That Jazz” foi considerado, pelo
“American Film Institute” como sendo
culturalmente, historicamente e esteticamente significativo e selecionado para
ser preservado no “Nacional Film Registry”. Em 2006 o filme foi considerado o
14º melhor filme musical da história do cinema.
Seria também o ultimo filme musical a ser
nomeado para o Oscar de Melhor Filme do Ano
antes de “A Bela e o Monstro”, em 1991, receber a mesma nomeação e,
finalmente em 2002, “Chicago” (o filme que Bob Fosse queria realizar, mas nunca
conseguiu por falta de financiamento, baseado na sua peça da Broadway), vencer
essa categoria.
Nota: As imagens e vídeo que ilustram o texto foram retirados da Internet
De
tempos a tempos surge um filme que nos traz á memória os bons velhos épicos que
assistíamos com os nossos pais e que faziam as delícias de quem ia ao cinema
nas décadas de 50 e 60 do século passado. “Tempo de Glória” foi um desses
filmes.
Produzido em 1989, ano de todas as mudanças no panorama internacional, feito na esteira
do sucesso obtido na televisão por “Norte e Sul” ( David L.Wolper, 1985), este
filme mostrou um outro lado da Guerra de Secessão Americana que ainda não havia
sido explorado antes.
O
Coronel Robert Gould Shaw, herói da Guerra de Secessão, oferece-se como
voluntário para comandar o 54º Regimento de voluntários do Massachusetts, o
primeiro inteiramente constituído por soldados negros contra o exército confederado,
mesmo conhecendo todos os dissabores que essa decisão lhe possa trazer…
O Monumento ao 54º Regimento de Infantaria em Boston
O
filme é baseado, em parte. nas cartas particulares que o coronel escrevia á sua
mãe (e das quais se ouvem excertos ao longo do filme) e nos livros “Lay This
Laurel”, escrito por Lincoln Kirstein e “One Gallant Rush” de Peter Burchard.
Kevin Jarre, o argumentista, disse que a
sua principal inspiração veio quando visitou o monumento de homenagem ao
Coronel Shaw e ao 54º em Boston (que se vê sob o genérico no final do filme).
Realizado
por Edward Zwick, realizador de “Lembras-te da última noite?” (1986) em que um
homem e uma mulher tentam manter uma relação amorosa apesar das suas diferenças
de opinião e das opiniões dos outros, filme produzido por John Hughes, rei da
comédia na década 80 do século passado; “Coragem debaixo de Fogo” (1996) em que
do resultado duma investigação, permitirá que uma oficial do exército seja
postumamente condecorada; “O Último Samurai” (2003), um épico-veículo para Tom
Cruise, também produtor do filme, cuja acção se passa no século XIX, onde um
oficial do exército americano, capturado numa batalha contra os samurais,
transforma-se num consultor militar dos
guerreiros orientais enquanto abraça a sua
cultura; “Diamante de Sangue”
(2006) cuja acção se centra na guerra civil da Serra Leoa, onde um mercenário
houve uma história sobre um pescador ter encontrado um grande diamante. Zwick,
formado na televisão, aplica os conhecimentos aí adquiridos em cenas de acção
muito bem encenadas, como seja por exemplo a primeira vez que a companhia entra
em acção numa escaramuça com as forças confederadas; ou o ataque ao Fort
Wagner, cujo massacre, quase integral da companhia, lhes dá a entrada na
História (a “Glory” de que fala o título original do filme). É uma cena
extremamente bem filmada, muito bem fotografada e com a banda sonora de James
Horner a dar o toque necessário para que a cena final (em que os nossos heróis
conseguem subir a muralha do forte) se torne na imagem mais poderosa do filme.
Com
um elenco onde se destacam os nomes de Matthew Broderick, como Coronel Robert
Shaw, abandonando com este filme os papéis das comédias que preencheram o seu
principio de carreira, o actor tem aqui talvez a sua melhor interpretação; Cary
Elwes como adjunto de Shaw e uma boa prestação do actor; Morgan Freeman,como o
coveiro Rawlins que ao se alistar vai-se transformar na figura paternal de toda
a companhia e uma espécie de mediador de conflitos, embora secundária, dá uma
interpretação ao seu melhor nível. O destaque vai, claro, para Denzel Washington,
que interpreta o soldado Trip, o racista inconformado com a sua situação, mas
que no ataque final, ao ver o comandante morrer ao seu lado, transporta a
bandeira dos Estados Unidos até à muralha (honra que lhe fora oferecida pelo
coronel na véspera da batalha e que Trip recusara, num dos melhores diálogos de
todo o filme, por não se achar com
capacidade para isso), dá um verdadeiro show de interpretação que lhe mereceu o
Óscar de Melhor Actor Secundário do ano, vitória conseguida na magnifica cena
em que Trip é chicoteado, depois de tentar desertar, perante o olhar de toda a
companhia (o seu olhar, misto de ódio e duma dor que está para além de qualquer
compreensão, é outro grande momento do filme) e aceita a sua condição sem
vacilar.
O
público respondeu positivamente quando o filme estreou, fazendo dele um dos
maiores sucessos de bilheteira do ano, elevando o seu orçamento, estimado em
cerca de 18.000.000 de dólares para um total de 63.000.000 só nos Estados
Unidos. Já a nível dos críticos, estes dividiram-se, embora na generalidade, o
filme tenha recebido louváveis críticas no tocante a valores de produção e
história condutora, foram mais moderados na avaliação das interpretações,
nomeadamente, a de Matthew Broderick como cabeça de elenco.
Vencedor
de 3 Óscares da Academia, e inúmeros outros prémios, “Tempo de Glória” foi um enorme sucesso de
bilheteira e um daqueles filmes que vale
sempre a pena ver e, por ser baseado em
factos verídicos, acaba por ser também uma lição de história sobre uma guerra
que envergonhou uma nação.
Nota: As imagens e vídeo que ilustram o texto foram retiradas da Internet