Em 1968, David Lean, nome ao qual se associam frescos históricos, grandes epopeias, verdadeiras superproduções cinematográficas,
encontrava-se de férias em Capri, na
Itália, quando recebeu de Robert Bolt, argumentista com quem já tinha
trabalhado em “Lawrence da Arábia” (1962) e “Doutor Jivago” (1965), seus filmes
anteriores, um argumento baseado na “Madame Bovary” de Gustave Flaubert. Lean
não se mostrou interessado e escreveu a Bolt a explicar porquê. Sugeriu então ao argumentista que, se rescrevesse a história, mas que mudasse a
localização da acção para outro país, então seria um caso a pensar. Bolt concordou com a ideia e os dois
passaram então cerca de um ano a desenvolver a história.
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A vila fictícia de Kirrary |
Em 1916, na vila de Kirrary, situada na costa ocidental
da Irlanda, Rose Ryan é uma jovem com um
espírito libertino, aborrecida com a vida que leva na vila onde vive e que
anseia casar com um homem que a leve dali para fora. Apaixona-se por Charles Shaughnessy,
professor da escola local, viúvo e mais
velho que ela, casa-se com ele pensando que a sua vida passará a ser mais
emocionante, mas cedo descobre que ficou
tudo na mesma. Mais tarde surge o Major
Randolph Doryan, comandante do destacamento Britânico, por quem Rose irá sentir
uma irresistível atracção sem medir as consequências que daí advirão, não só
para eles, como também para Charles.
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A obra que inspirou o filme |
O argumento final de Robert Bolt
mantém alguns paralelismos com o romance
original de Flaubert, nomeadamente no tocante ao trio central, assim temos: uma
heroína que paga pelos seus caprichos, no romance, Emma mata-se, no filme,
Rosy sofre um castigo bem maior;
Charles Bovary, o marido intruído, é
médico no romance, enquanto no filme
a personagem,Charles Shaughnessy, é, tal como Robert Bolt fora,
professor; finalmente, o amante viril que preenche todas as fantasias da
heroína, no romance é Rodolphe Boulanger , no filme é o major Doryan, que fica como o terceiro vértice do triângulo
amoroso. Em ambos, livro e filme, a consumação do acto ilícito acontece na
floresta nebulosa, no meio de flores e fetos. É uma das mais bonitas cenas de
amor que alguma vez Lean filmou.
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Charles Shaughnessy & Rose Ryan |
Para os papéis principais, a escolha não foi fácil. David Lean
queria alguns sonantes como Paul Scofield, Peter O’Toole, Richard Harris ou
Richard Burton, que, por uma ou outra razão, não estavam disponíveis e acabou
por se decidir por Robert Mitchum, que lhe foi sugerido por Anthony
Havelock-Allen, produtor do filme, e Lean lembrava-se dele em alguns filmes dos
anos 40 e 50. Sarah Miles, na altura era Sra. Bolt, foi escolha óbvia já que a
personagem de Rose Ryan fora escrita a
pensar nela. O major Doryan fora pensado com Marlon Brando em mente, que
inicialmente aceitou, mas que depois acabou por ter de desistir já que
problemas com a produção de “Burn! - Queimada” (Gillo Pontecorvo, 1969), que
Brando estava a protagonizar na altura estiveram na origem da desistência. Lean
acabou por escolher Christopher Jones que vira numa produção Britânica “ The
Looking Glass War” (Frank Pierson, 1969).
Alec Guiness recusou o papel do Padre
Hugh Collins e este acabou por ser interpretado por Trevor Howard, um dos
grandes actores britânicos de sempre. A sua personagem é uma das mais
importantes do filme, a sua figura, de cabelos brancos e costas curvadas pelo peso dos anos,
carrega os pecados de toda uma comunidade de que tem de cuidar, representando a
força moral da população num lugar deslumbrante e quase esquecido por deus.
Michael,
o idiota da vila, mudo, expressão patética será um dos fios condutores das
diversas histórias que se entrecruzam ao longo do filme. Será testemunha,
idiota e muda, de muitos segredos, mas ao mesmo tempo capaz de os comunicar a
todos. Interpretado por John Mills, outro nome sonante do cinema britânico, que
seria, muito justamente, diga-se, premiado com o Oscar da Academia para Melhor
Actor Secundário, um dos dois únicos Oscares que esta produção receberia sendo
o outro o de Melhor Fotografia para Freddie Young que tem aqui um trabalho de
cortar a respiração.
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A paisagem imensa que serve de pano de fundo ao filme |
Desde a primeira cena, logo após a Abertura, ao som da magnífica música
de Maurice Jarre, onde vemos a costa Irlandesa e uma minúscula figura a correr
em direcção à falésia, percebemos que estamos num filme de proporções enormes e
uma paisagem imensa. É um filme feito de planos gerais, com a câmara colocada
bem longe do cenário filmado, não só a citada cena inicial, como os rochedos,
as praias, a própria vila, imagens belíssimas, enquadramentos cuidadosamente
estudados ao pormenor, tudo é preparado com um cuidado e uma dedicação próprias
de quem sabe aquilo que quer mostrar, bem ao estilo de David Lean.
Mas seria na
sequência da tempestade que o realizador mostraria todo o seu talento e
perfeccionismo.Foram vários meses de espera até que surgisse a tempestade que o argumento descrevia. Por diversas vezes a equipa recebia o aviso duma tempestade, deslocava-se para os locais exigidos e apenas conseguiam filmar uma ou duas horas no máximo, já que depois a tempestade desaparecia por si. Quando finalmente estavam reunidas as condições necessárias para filmar, Freddie Young orientava as cameras e os técnicos, Lean dirigia os actores, exigindo deles o máximo, causando mesmo alguns ferimentos nos intérpretes . Desde manter um disco de vidro a girar em frente ás lentes da camera para que estas estivessem sempre secas, até envolver a camera num saco de plástico, não fosse esta ser atingida por chuva, salitre e ficasse impedida de ser utilizada, Lean não poupou esforços para que a cena ficasse perfeita e ao nível de algumas cenas dos seus clássicos anteriores, como a cena do êxodo de comboio em “Doutor Jivago”, ou o ataque a Damasco em “Lawrence da Arábia”.
A rodagem teve início em Março de 1969 e terminaria a 24 de Fevereiro de
1970, praticamente um ano demorara a rodagem, entre avanços e recuos, problemas
entre o realizador e os actores e também entre os próprios, tornaram “ A Filha
de Ryan” um filme quase amaldiçoado. Uma história de amor contada em 220
minutos, duração inicial e pré-exibida aos distribuidores, parecia longa demais
e foi criticada pela sua longa duração e
ritmo lento. Lean concordou e sentiu-se
na obrigação de remover cerca de 17 minutos antes da estreia, as cenas
removidas nunca mais foram restauradas, nem sequer localizadas. O filme acabaria
por estrear numa versão remontada de 196 minutos, que se manteve até à edição
em DVD em 2007, que trouxe o filme até à sua duração de 206 minutos e que tem
permitido uma nova abordagem ao filme e redescoberta duma pequena obra-prima dum realizador que deu tantas outras obras-primas ao cinema.
O filme teve um sucesso moderado em todo o mundo e foi um dos maiores
sucessos de bilheteira na Grâ-Bretanha, que manteve o filme em exibição durante
quase dois anos seguidos. Os críticos, pelo contrário, iriam assassinar o
filme, apesar das altas expectativas, pelo facto do realizador ter feito três
superproduções de sucesso seguidas, depois de o terem visto, foram por água
abaixo. Para eles, Lean estava acabado, assim como o seu estilo de cinema.
Iriam passar 14 anos até que David Lean voltasse a filmar. 14 longos anos em que foram feitas várias tentativas de fazer uma nova versão de “Mutiny
on the Bounty – Revolta na Bounty” (Frank Lloyd, 1935) e que fosse diferente da
versão de 1962, realizado por Lewis Milestone,
que falharam. O realizador, vencedor de dois Oscares como Melhor
Realizador e cujos filmes, até então, lhe tinham granjeado mais de vinte
Oscares da Academia em mais de cinquenta nomeações, iria regressar, aos 76 anos
de idade, atrás das cameras com o seu opus final, o maravilhoso “A Passage to
India – A Passagem para a Índia”, em 1984.
Nota: as imagens e vídeos que ilustram este texto foram retirados da Internet
Nota: as imagens e vídeos que ilustram este texto foram retirados da Internet