O Tempo passa sem parar, como um rio que corre em direcção ao mar, dissipa-se nas brumas da Memória colectiva... É o Tempo que serve a memória ou é a memória que serve o Tempo?
A segunda parte do diptíco dedicado à batalha de
Iwo Jima, uma das mais sangrentas da Segunda Guerra Mundial do século passado.
A primeira parte focava o ponto de vista americano. “Cartas de Iwo Jima” foca o
ponto de vista japonês, quase totalmente
falado em japonês (Ken Watanabe era o único actor que falava inglês e servia de
ligação entre a equipa de produção e o elenco, todo ele desconhecido), mas
fazendo uma abordagem muito mais pessoal e intíma. Tudo filmado sob a mestria e
o olhar atento de Clint Eastwood. Embora usando a mesma técnica empregue em "As Bandeiras", Eastwood
evita a repetição. Troca o ponto de vista da batalha ( o momento grande da obra
anterior, o içar da bandeira no monte Suribachi, é visto á distância dum abrigo
japonês) e utiliza as cartas e os pensamentos que os Oficiais e Soldados Japoneses
escreveram para os seus familiares enquanto aguardavam a invasão.
O filme abre com uma sequência, no presente, em Iwo
Jima. Numa gruta são encontradas centenas de cartas que não chegaram a ser
enviadas. São elas o ponto de partida para este filme, já considerado uma
obra-prima do cinema e, muito particularmente do seu realizador. Nessa cartas,
algumas são do General Kuribayashi e nelas o militar revela as suas
preocupações, ansiedades e alguns acontecimentos ocorridos durante o tempo em
que comandou as tropas na ilha
Iris Yamashita, Clint Eastwood e Ken Watanabe
As personagens estão construídas de forma humana
(ao contrário das personagens de “As Bandeiras” onde nos era mostrado alguma
desumanidade), é esse o lado do conflito que Clint Eastwood pretende mostrar.
Mais do que homens, tornados soldados pela força das circunstâncias, de
capacete e arma em punho cuja missão principal é eliminar outros homens. São
jovens, cada um com o seu desejo, o seu trauma, enfim, histórias que fazem com
que este filme fuja do convencional filme de guerra. Em certas alturas, o
espectador é envolvido pela força da história e deixa-se conduzir pelas
personagens, principalmente pela hierarquização entre o general e o soldado,
dois extremos que a guerra une em conceitos tão universais como o medo, a honra
ou o amor pela familía.
Inicialmente, o filme era para se chamar “Red Sun,
Black Sand”, mas só muito dentro das filmagens é que o título foi mudado para
“Letters from Iwo Jima” por ser, em grande parte, baseado no livro “Gyokusai
sõshikikan no etegami – Picture letters from the Commander in Chief, escrito
pelo General Tadamichi Kuribayashi, o comandante das forças japonesas na ilha
(interpretado com grande intensidade por Ken Watanabe), compiladas e publicadas
pelo editor Tsuyuko Yoshid. Baseado
nele, a argumentista Iris Yamashita escreveu a história, posteriormente
desenvolvida pela própria com a ajuda de
Paul Haggis no argumento deste
extraordinário filme.
Utilizando alguns colaboradores habituais de Steven Spielberg (que produziu os
dois filmes), Clint Eastwood consegue um relato verdadeiramente dramático de
uma batalha que, à partida, já estava perdida, consegue-o através da fotografia
esplendorosa de Tom Stern, filmado, á semelhança de “As Bandeiras dos Nossos
Pais”, num quase preto-e-branco intenso, dando um realismo atroz ás sequências
de batalha. Esta técnica fotográfica faz com que o interior das grutas e dos
túneis pareçam irreais, os rostos ansiosos parecem conter algum brilho na
sombra, iluminando o seu próprio sofrimento. Quando sujeita á luz do dia, a
fotografia de Stern, torna-se mais realista e solene.
Com este
filme, o realizador evita a habitual repetição nos filmes, invertendo os
factores. Poucos são os filmes que tomam o ponto de vista dos vilões
transformando-os em heróis, como aconteceu com “Cross of Iron – A Grande
batalha”, realizado por Sam Peckinpah em 1977, cuja acção se passa em 1943, na frente russa e onde os nazis são os heróis
e os russos os vilões feios, porcos e maus.
É costume descrever-se como épico um filme que gira
em volta de grandes batalhas, acontecimentos históricos e grande quantidade de
mortos. Mas Eastwood não entra por este caminho. Apesar de alguns cenários
mostrarem armamento em larga escala, o ambiente geral de “Cartas de Iwo Jima”,
é altamente intímo, apesar de percorrido por uma enfática força emocional, o
realizador consegue mostrar uma particular atenção a gestos e discursos que se
podem considerar delicados. Clint Eastwood não é um desconhecido para a linguagem da violência, mas é um mestre no
que toca a dramatizar as consequências éticas e morais da própria violência.
Não existe nada gratuito neste filme, tudo tem o seu preço, nem nada
vistoso ou falso. Existem humor e crueldade próprias de homens em
perigo; existe a frieza lógica do planeamento militar e a irracionalidade do
comportamento em combate; existe vida e morte.
Ambos os filmes “viajam” para a frente e para trás
no tempo e no espaço entre Iwo Jima e os locais onde habitam os combatentes. Em
“As Bandeiras dos Nossos Pais” a batalha acontece maioritariamente através de
“flashbacks”, já que o filme é, em larga
medida, acerca da culpa e confusão que
os sobreviventes encontram aquando do seu regresso a casa. Em “Cartas de Iwo Jima”, a batalha acontece no presente, e é a casa
que surge ocasionalmente na memória dos homens que têm quase a certeza de que
não a voltam a ver.
A recepção de critica e público foi extremamente
positiva. Aclamado, pelo retrato do bem e do mal em ambos os lados da batalha,
“Cartas” foi rapidamente considerado uma obra-prima do cinema de guerra.
Premiado em diversos festivais mundo fora, vencedor do Globo de Ouro para
Melhor Filme em Língua Estrangeira e recipiente de quatro nomeações para os
Oscares da Academia, incluindo duas para Melhor Filme do Ano e Melhor
Realizador.
No Japão, o filme obteve um sucesso ainda maior do
que nos Estados Unidos quer por parte de críticos, quer pelo próprio público,
sempre muito reservado em relação aos filmes que abordam temas tão delicados
como este.
Em 2010, o American Film Institute considerou “Cartas
de Iwo Jima” um dos 10 melhores filmes de guerra de todos os tempos.
Nota: As imagens e vídeo que ilustram o texto foram retiradas da Internet
Em 1962, “The Longest Day – O Dia mais Longo”, uma
superprodução de guerra sobre o dia D – o desembarque aliado na Normandia e que
foi o ponto de viragem da II Guerra Mundial na Europa. Filmado a
preto-e-branco, permitiu na altura, juntar imagens documentais ás cenas
filmadas com actores reais e tornar o filme uma referencia no panorama da
superprodução. A grande novidade deste filme foi o facto de ser filmado por
três realizadores por forma a apresentar três perspectivas diferentes da
operação: Ken Annakin filmou os segmentos britãnicos; Andrew Marton
encarregou-se dos episódios com as forças americanas; e Bernhard Wicki tratou
dos segmentos alemães. No conjunto, os três pontos de vista formaram uma visão
conjunta, antes, durante e depois do desembarque e tornaram este filme,
vencedor de dois Oscares da Academia, um clássico incontornável do cinema.
Alguns anos depois, em 1970, “Tora, Tora, Tora” apresentava uma reconstituição
do ataque japonês a Pearl Harbor. Richard Fleischer e Kenji Fukasaku foram os
realizadores encarregados de mostrar os pontos de vista de ambos lados. O
filme, vencedor de um Oscar da Academia, não foi o sucesso esperado mas
tornou-se, com o passar dos anos, um filme cada vez mais e mais revisitado por
cineastas e outros interessados. O formato não convenceu e foi preciso esperar
pelo sucesso mundial de “Saving Private Ryan – O Resgate do Soldado Ryan”
(Steven Spielberg, 1998) para regressar ao formato da dupla perspectiva de determinado
acontecimento. Em 2006, o veterano realizador Clint Eastwood, pegou no formato
e fez dois filmes inesquecíveis.
Parece difícil pensar que haja alguma coisa sobre a
IIªGuerra Mundial que ainda não tenha sido objecto de análise, reconstituição
ou mesmo adaptação para o grande ou pequeno écran. No entanto foi isso mesmo
que Clint Eastwood quis fazer quando leu “Flags of Our Fathers – As Bandeiras
dos Nossos Pais”, o livro de James Bradley e Ron Powers onde se descreve como as
vidas dos três sobreviventes que estiveram envolvidos no Içar da Bandeira
Americana em Iwo Jiwa, em fevereiro de 1945, imortalizados pela fotografia que
Joe Rosenthal da Associated Press lhes tirou, se alteraram após aquele momento
e do aproveitamento que o governo faz, ao transformá-los em celebridades
apresentadas em paradas e outras celebrações, apresentando-os como porta-voz no
esforço de guerra.
O argumento, escrito por William Boyles, jr. e Paul
Haggis, adapta muito do material escrito, oscila entre três períodos temporais:
Iwo Jiwa, a tournée em prol do esforço de guerra e no presente. É nos destinos
de cada um dos heróis que o filme evolui do mediano filme de guerra para um
trabalho interpretativo de grande qualidade, principalmente no que toca a Ira
(uma excelente interpretação de Adam Beach), um índio Pima, que, destroçado pela
batalha em Iwo Jiwa, passa a herói dum momento para outro, não aguenta a
pressão e tenta esquecer bebendo até cair num verdadeiro oblívio.
O Realizador Clint Eastwood
A abordagem
de Eastwood é muito cinematográfica. Ele desconstrói a batalha de modo a
torna-la uma visão muito mais negra do que a história regista. Aproveita para esse
efeito a natureza vulcânica da própria ilha (apesar das sequências de batalha
terem sido filmadas na Islândia, porque o governo japonês não autorizou
filmagens na ilha por a considerarem solo sagrado), o realizador e Tom Stern,
director de fotografia, usando filtros especiais, tiram alguma da cor dando a
sensação de que as cenas na ilhas são filmadas a preto-e-branco e quase parece
impossível que haja alguma coisa viva naquela local de tão assustadoras e
surreais que são as imagens. Eastwood
coreografa as cenas de batalha de um modo tão caótico, a fazer lembrar o início
de “O Resgate do Soldado Ryan”, focando a atenção (sua e dos espectadores) nos
movimentos das tropas em vez de ser na realização, “colando” a câmera aos
soldados e depois quando acontecem
barragens de fogo, a correr ao lado deles como se procurasse abrigo.
A maior parte dos filmes de guerra, mesmo aqueles
que se dizem anti-guerra, aberta ou implicitamente abraçam a violência e
veem-na, politica ou cinematograficamente, como um meio para atingir um fim.
Poucos são os realizadores que conseguem resistir á visão de um míssil a
explodir e ao espectáculo da morte; a violência é simplesmente demasiado
excitante para se evitar. E Eastwood não se esquiva a esta realidade, bem pelo
contrário, como fica bem demonstrado em “ As Bandeiras dos Nossos Pais”. Somos
conduzidos ao coração da violência e ao coração dos homens, vemos até onde é
possível ir, com a mesma facilidade com que vemos grutas onde soldados são torturados até á morte ou sucumbem á loucura
ou assistimos ao fogo-de-artíficio num qualquer dia festivo. O filme
apresenta-nos esta visão cruelmente e Clint Eastwood defende-se dizendo “Que
era importante para o público perceber aquilo porque estes três homens
passaram, aquilo a que se dedicaram e o que herdaram e o que é ter aquela
sensação de falsa celebridade…” e tinha toda a razão do mundo!
Recebido com entusiasmo pela crtíca e público, o
filme não foi, no entanto, o sucesso esperado. Clint Eastwood foi nomeado para um Globo de Ouro
como Melhor Realizador e o filme recebeu duas nomeações para os Oscares da
Academia. Em alguns sectores da sociedade, o filme foi considerado uma obra
séria e patriota já que honra todos aqueles que combateram no pacífico e, ao
questionar a versão oficial da verdade, lembra-nos que super-heróis existem
apenas nos livros de Banda Desenhada e nos filmes de animação. Com “Letters
from Iwo Jiwa – Cartas de Iwo Jiwa”, o caso foi diferente.
(continua)
Nota: As imagens e vídeo que ilustram este texto foram retiradas da Internet