domingo, 12 de maio de 2019

                                     ACONTECEU NO OESTE 

Há, no cinema, inúmeros momentos que, só por si, valem toda a pena e tornam os filmes dignos de serem vistos e alguns deles, por via desses mesmos momentos, transformam-se em verdadeiras obras-primas destinadas a serem vistas e revistas, analisadas e re-analisadas por gerações de espectadores e estudiosos da Sétima Arte.  É assim com a cena final de “The Searchers – A Desaparecida” (1956), a última obra-prima de John Ford; ou com o anti-heroismo que Alan Ladd mostra em “Shane” (George Stevens, 1953). Dificil mesmo é superar o início de “Aconteceu no Oeste”.
Flagstone, uma cidade no oeste americano é o centro duma luta pela posse das terras, por onde o caminho- de-ferro terá de passar e que tem a única fonte de água da região, entre Brett McBain, dono das terras, e Morton, um milionário dos caminhos-de- -ferro que quer as terras a todo o custo e não olha a meios para o conseguir, mesmo que seja preciso matar; pelo meio desta luta surgem a mulher de Brett e um ladrão romântico acabado de fugir da prisão. Entretanto um homem sem nome, desembarca na cidade, parece ter um encontro marcado com alguém mas como esse alguém não aparece, ele deambula pela cidade observando tudo e todos e acaba por tomar uma posição em relação ao conflicto eminente.
Depois de terminar “The Good, the Bad and the Ugly – O Bom, o Mau e o Vilão” (1966), Sergio Leone tinha decidido não voltar a fazer westerns pois queria ter tempo para fazer outros filmes e já tinha começado a trabalhar numa ideia baseada num livro intitulado “The Hoods”, escrito por Harry Grey, no qual ele contava as suas experiências como jovem Judeu durante a Lei Seca (esta ideia seria transformada na sua obra-prima final, “Once Upon A Time in America – Era Uma Vez na América”, mas apenas em 1984!), quando os estúdios da Paramount lhe ofereceram a possibilidade de trabalhar com Henry Fonda, que era o actor favorito de Leone e com quem ele já queria trabalhar desde o início da sua carreira de realizador, liberdade criativa e um orçamento considerável. Leone nem pensou duas vezes e aceitou de imediato.
         
No final de 1966, Sergio Leone começou a trabalhar no argumento do seu novo filme. Chamou Bernardo Bertolucci e Dario Argento, que tinham sido criticos de cinema antes de se tornarem realizadores, para desenvolver o argumento e para isso passaram grande parte do ano seguinte em casa de Leone a ver e a discutir os Westerns clássicos  de Fred Zinnemann, de Howard Hawks, de Michael Curtiz e de John Ford para, no final, construirem uma história quase toda feita á base de referências aos westerns americanos. 
Com “Aconteceu no Oeste”, Leone, mudou a sua forma de abordar a temática e, ao contrário dos seus anteriores westerns que eram mais ritmados e com um ligeiro humor á mistura, este é mais sombrio na temática e lento no ritmo, obrigando o espectador a estar atento a todas as cenas. Tal como na chamada “Trilogia dos Dólares” que antecedeu este filme, o estilo do realizador continua muito influenciado por Akira Kurosawa, o grande realizador japonês, cuja sombra paira sobre em alguns dos mais belos planos cinematográficos desta obra-prima que foi o início de uma nova trilogia cinematográfica que alguns apelidaram de “Once Upon a Time Trilogy”, que o realizador nunca confirmou, preferindo apenas chamar-lhe “Uma Trilogia sobre a América”.
            
Sergio Leone queria novamente Clint Eastwood para interpretar “Harmonica” (o nome pelo qual a misteriosa personagem é apelidada por Cheyenne), mas o actor recusou por achar que apenas se iria repetir na personagem do “Homem sem Nome”( que o tornara famoso nos filmes anteriores do realizador). Aborrecido pela recusa de Eastwood, Leone lembrou-se de Charles Bronson, a quem já propusera papéis em “Por um Punhado de Dólares”, “Por Mais Alguns Dólares” e em “O Bom, O Mau e o Vilão” que o actor recusou por razões diversas. Desta vez, perante a insistência do realizador, Bronson aceitou e obteve assim o seu primeiro papel principal. Henry Fonda, que interpreta Frank, o assassino sem escrúpulos ( a única vez na sua longa carreira em que interpretou um vilão), começou por recusar o papel por achar que não seria benéfico para a sua carreira, mas depois de um encontro com Leone em que este lhe explicou o que pretendia dele, a actor aceitou. 
           
      Para o papel de “Cheyenne”, o bandido mexicano romântico Leone escolheu Jason  Robards, um actor já com uma carreira respeitável na televisão em diversas séries ou no cinema em papéis secundários e que necessitava de um filme que o fizesse descolar da mediania. Ao contrário dos seus filmes anteriores em que as personagens eram maioritariamente homens, Leone quis romper com essa regra e convidou a sua conterrânea, a bonita e sensual Claudia Cardinale para o papel de Jill McBain, uma antiga prostituta que, por via do seu casamento com Brett, se torna na senhora McBain e, sem saber uma mulher rica e cobiçada por outros homens. Cardinale já era uma actriz conceituada no seu país de origem pois já trabalhara com nomes grandes do cinema europeu e mundial como Frederico Fellini, Luchino Visconti, Richard Brooks, Blake Edwards ou Franco Zeffirelli, entre muitos outros, e foi a sua sensualidade aliada á beleza mediterrânea que dela emanava que fez com que ela singrasse na meca do cinema.
  
Com o elenco escolhido, as filmagens tiveram início em 1967 e prolongaram-se até princípios de 1968 em diversos locais de itália, espanha e estados unidos. 
           
 O filme é longo e lento, divide-se em vários níveis (que são as histórias que ocorrem dentro do filme). A história centra-se em duas narrativas, a princípio separadas, mas que depois se juntam. A primeira, tem a ver com a chegada do caminho de ferro e do conflito que acontece; a segunda, é a típica história de vingança, a que se vão juntar outras narrativas que evoluem a par com as narrativas iniciais e que acabam por se misturar com elas, graças á “mise-en- scéne” detalhista e lenta, própria de um “western spaghetti” que Leone usa. Literalmente é a história de uma mulher atirada para o meio do universo mítico que Leone cria, é o seu Oeste, um mundo violento feito de homens, das suas armas e das suas vítimas (o plano dela a sair da plataforma do comboio para dentro da estação e depois o grande plano sobre o telhado da estação, dela a caminhar para a cidade é uma verdadeira obra-prima). 
     
     
     
Harmonica procura Frank, um pistoleiro pago por um magnata dos caminhos de ferro para assassinar a família McBain para obter as terras deste por forma a permitir que o caminho de ferro seja construído e deixa um rasto para que Cheyenne, que entretanto fugiu da sua escolta, seja o culpado dos assassiníos. Harmonica alia-se a “Cheyenne” para salvar Jill Mcbain, ex-prostituta de New Orleans e herdeira das terras do marido, das mãos de Frank. A circularidade do argumento não deixa pontas soltas e encaixa as narrativas, que aparentemente nada têm de comum, umas nas outras, demonstrando um trabalho de escrita de argumento quase perfeito. 
           
Leone não tem pressa em fazer revelações. Não sabemos quem é “Harmonica” e que no início é aguardado por três pistoleiros numa estação de comboio (as únicas indicações que nos são dadas consistem numa série de imagens esbatidas onde vemos um homem avançar a pé numa planície); sente-se algum receio ao ver os olhos inexpressivos de Frank enquanto despacha aqueles que se lhe opõem; demora a perceber qual o papel de “Cheyenne” no meio da acção e que fará Jill depois de ver a sua família morta. Tudo é mostrado e pouco é dito, mas é aqui que “Aconteceu no Oeste” se afasta dos westerns anteriores de Leone. A convergência da narrativa é perfeitamente cadenciada de forma a tornar os diálogos supérfluos que vão sendo progressivamente substituídos pelos olhares detalhados e planos gerais que dizem tudo o que é preciso dizer. O espectador é atirado para a narrativa naturalmente e nem se apercebe da longa duração do filme.
            “Aconteceu no Oeste” serve também para meditar sobre o avanço da civilização e da modernização do Novo Mundo em oposição á destruição do Oeste e daquilo que o tornou famoso e que Leone tão bem soube mostrar nas suas obras anteriores: o Oeste masculino, a lei dos homens, no qual a personagem de Jill McBain parece não ter lugar adquirido nem por via do seu casamento com McBain, mas que terá de o conquistar a pulso e que, invariavelmente, virá a conseguir (a cena final dela a caminhar entre os trabalhadores do caminho de ferro para lhes dar água e comida é o resultado dessa conquista). 
           
Uma curiosidade interessante e que diz muito sobre aquilo que o  realizador pretendeu é o título italiano do filme, “C’era Uma Volta Il West” que, literalmente, quer dizer “Once Upon a Time there was the West” e que em português seria qualquer coisa como “Era uma vez no Oeste” (que viria a ser utilizado no filme “Era Uma Vez na América”, 1984). Isto tudo para dizer que aquilo que Sergio Leone está a contar não é uma história passada no Oeste, mas sim uma história do próprio Oeste! Uma história de como o Oeste, tal como era conhecido, acabou. Metaforicamente falando, esse final duma época gloriosa e cheia de histórias e de aventuras, é representada pelas personagens de Morton e de Jill. Morton, com o seu comboio e o seu dinheiro personifica o capitalismo (que enfraquece e corrompe ), a industrialização e a tecnologia ( que inviabiliza a existência de heróis), por isso não se estranhe o facto de o filme começar e acabar com a chegada dum comboio. Este último aspecto é admitido num diálogo que “Harmonica” e Frank têm pouco antes de avançarem para o seu duelo final.
     
O papel de Jill neste final de época, não é muito explícito, mas igualmente central tal como o são “Cheyenne”, “Harmonica” e Frank. Ela é a pioneira, a mulher que tem de trazer ordem e estabilidade ao caos, a mulher que domestica e faz com que os homens que a rodeiam, se apaixonem facilmente por ela e nesse intuito, a queiram ajudar a pacificar o caos masculino  que a rodeia.
            
O trabalho de Leone sai, como sempre enaltecido, graças, não só, á sua dedicação a um género único como foi o western, mas também porque o seu toque está sempre presente como estava nas suas produções anteriores, mas aqui está ainda mais presente: os “Close-Ups” são mais próximos, os silêncios maiores e a composição das imagens mais apelativa. Tudo isto está patente em diversos momentos do filme: desde o início (numa cena com 12 ou mais minutos, onde os três pistoleiros aguardam a chegada de alguém, durante a qual decorre o genérico e nem uma palavra é dita), até ao duelo final entre “Harmonica” e Frank onde depois de um diálogo esclarecedor, ambos avançam lentamente até se posicionaram de modo a que o sol não interfira no seu recontro. Leone usa todos os recursos para filmar aquele que será o momento mais alto do filme e também do género.  O trabalho de Leone sempre primou pelo brilhantismo e pelo equilíbrio entre desmascarar o western e romantizá-lo, simultaneamente desmistificá-lo e mistificá-lo. Os seus heróis podem não ser verdadeiros heróis, mas acabam sempre por triunfar sobre os vilões, o Bom é sempre um pouco melhor do que o Mau ou o Vilão. Mas, como em todos os filmes de Leone, é sempre este último sentimento que prevalece e em “Aconteceu no Oeste”, isso é mais que evidente.
         
 Ennio Morricone e Sergio Leone
Importante também na obra do realizador é a banda sonora dos filmes. Para isso Leone contou sempre com a colaboração do seu conterrâneo, Ennio Morricone, cuja música contribuía para o andamento da acção de cada um dos seus filmes, quase que se pode dizer que fazia parte da obra. Se em “O Bom, O Mau e o Vilão”, a banda sonora composta ainda antes da rodagem, era tocada durante as filmagens, contribuiu para o grande sucesso do filme, para “Aconteceu no Oeste, o trabalho do compositor é mais sóbrio e menos dedicado, mas mais evocativo e variado com temas como o de Jill, que é terno e carinhoso, ou como a harmónica que se ouve e que antecipa a explosão nervoso-eléctrica da guitarra que acontece quando Frank surge em cena depois de massacrar a família McBain ou quando “Harmonica” revela a sua identidade. Pode mesmo dizer-se que a música de Morricone e as imagens de Leone são completamente indissociáveis. Tal como no filme anterior, o realizador pediu ao compositor para compor a música antes da rodagem começar, para que aquela pudesse tocar no “plateau” para que os actores se pudessem sentir á vontade durante a filmagem. Uma curiosidade que diz muito sobre a importância do compositor e da música em qualquer filme: Stanley Kubrick, que também era um confesso admirador de “Aconteceu no Oeste”, perguntou a Leone porque é que ele só gostava das bandas sonoras nos seus filmes compostas por Ennio Morricone? Ao que o realizador respondeu que também não gostava muito de Richard Strauss até ver “2001: Odisseia No Espaço” (1968)!
            Quando estreou, “Aconteceu no Oeste” foi um enorme sucesso em frança e em toda a europa. Nos Estados Unidos a recepção foi menos calorosa do que a “Trilogia dos Dólares, mas acabou por ganhar algum estatuto durante as décadas de 70 e 80 quando jovens realizadores como Martin Scorsese, John Carpenter, George Lucas, John Boorman ou Quentin Tarantino falaram sobre a influência do filme nas suas carreiras e abertamente o reconheceram como uma obra-prima.
       
Inicialmente, nos Estados Unidos, para evitar algum fracasso nas bilheteiras, a Paramount Pictures, a distribuidora do filme, fez sair uma versão de 145 minutos. Quando o filme começou a ganhar algum estatuto, a versão americana foi restaurada para 165 minutos naquela que se manteve a versão mais próxima da visão do realizador, também conhecida como “Versão Internacional” e que foi editada em vídeo e exibida nas televisões. Em 1998, por ocasião do seu 30º aniversário, o filme foi restaurado para exibição nos cinemas onde voltou a dar nas vistas e a ganhar novo estatuto por parte duma nova geração de cinéfilos. Com 175 minutos, a chamada “Versão do Realizador”, com algumas cenas aumentadas e com a cor melhorada, foi editada, no início dos anos 2000, apenas em Itália. A versão internacional é aquela que ainda se mantém disponível no mercado.
            “Aconteceu no Oeste” é um grande triunfo cinematográfico, figura em practicamente todas as listas dos melhores filmes de sempre, incluindo a distinção que lhe foi atribuída em 2009, quando foi selecionado para figurar no Registo de Filmes da Biblioteca Nacional do Congresso dos Estados Unidos pela sua importância Cultural e Histórica. Em suma, uma Obra-prima!



Nota : as imagens e vídeo que ilustram o texto foram retiradas da Internet



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