O Tempo passa sem parar, como um rio que corre em direcção ao mar, dissipa-se nas brumas da Memória colectiva... É o Tempo que serve a memória ou é a memória que serve o Tempo?
Em 1968, “Bullit” realizado por Peter Yates,
elevava o género policial a um novo patamar: Frank Bullit, Detective da Policia
de San Francisco, é escolhido para guardar um perigoso mafioso que tem de
testemunhar em tribunal; até aqui nada de novo no género, então quais os
motivos que levaram a que este filme se destacasse de todos os outros dentro do
género? Para além de Jacqueline Bisset (
nunca esteve tão bonita e sensual como neste filme) e Steve McQueen, mais
“cool”que nunca, é uma excepcional perseguição automóvel filmada a grande
velocidade nas ruas acidentadas de San Francisco, que marcou a diferença na
época e tornou “Bullit” num marco incontornável do cinema. Isto até surgir
“French Connection”, três anos depois.
No
final da década de 60 do século passado, Nova York vivia uma ressaca de Heroína
como nunca tinha acontecido. Nas ruas corria o boato de que um grande
carregamento estava para chegar. Popeye Doyle, Detective da brigada de
narcóticos da policia de Nova York , homem bruto e de métodos pouco ortodoxos e
o seu parceiro Detective Buddy Russo, tomam conhecimento desse boato e resolvem
investigar o que é que está por detrás dele…
O filme é baseado num livro de Robin Moore,
que por sua vez se baseou numa história verídica ocorrida no final da década de
60, inícios de 70, quando a maior parte da heroínailegalmente importada para a Costa Leste dos
Estados Unidos, vinha através da França (a “FrenchConnection”, a que se refere o título do
filme). Tal como a história e os dois protagonistas, outras personagens do filme também são baseadas em pessoas reais que estiveram
envolvidas no esquema do tráfico de heroína.
“The
French Connection”, que em português recebeu o título pouco apelativo de “Os
Incorruptíveis contra a Droga”, é um filme violento, não só pela temática que
aborda, como pela maneira que é abordada: de uma maneira frontal e directa
(veja-se a cena em que os potenciais compradores de Heroína assistem á
demonstração da sua pureza no quarto do hotel)
O
realizador William Friedkin tira partido da aprendizagem que fez nos anos em
que trabalhou na televisão e aplica esses conhecimentos de uma forma realista:
quase sempre de camera na mão (atente-se na cena da perseguição de gato e do
rato que começa á saída do hotel onde Charnier está instalado e vai terminar de
um modo absolutamente fabuloso no metro em Central Station com o acenar de mão
do francês num tom de gozo ao frustrado detective que corre ao longo da
plataforma do metro em andamento,a tentar, a todo custo, apanhar o seu alvo ;
ou logo no inicio quando Doyle e Russo perseguem um suspeito ao longo das
ruas), técnica que seria, anos mais tarde utilizada em muitas produções
principalmente para televisão como “Hill Street Blues”, NYPD Blues ou até “24”.
William Friedkin queria que o seu filme
tivesse nas interpretações a sua maior força, mas foi exactamente aí que teve
os maiores problemas desde o começo. Queria que o seu filme fosse recheado de
grandes interpretações. Antes de se decidir por Hackman ( o realizador sempre
se opôs á escolha do actor para liderar o elenco), Friedkinconsiderou Paul Newman, Jackie Gleason, Peter
Boyle, Charles Bronson e até Steve McQueen, que recusou por não querer fazer
outro policial. Por variadas razões,que
vão desde cachets altos, receios de não estarem á altura do que lhes era
exigido pelo papel, até recusas por acharem a temática do filme demasiado
violenta, as suas escolhas recusaram o papel. A dada altura pensou-se que seria
Rod Taylor quem iria ficar com o papel (Hackman disse que o actor lutara imenso
pelo papel), já que fora aprovada pelo estúdio, mas, perto do início da
rodagem, Taylor abandonou o projecto. O realizador não teve outra hipótese
senão aceirarHackman para interpretar
Doyle.
Gene
Hackman, Roy Scheider e o veterano actor espanhol Fernando Rey são os
protagonistas deste excepcional filme policial, as suas interpretações são
fabulosas, principalmente Gene Hackman no papel de Popeye Doyle, com o qual
ganhou o seu primeiro Óscar de Melhor Actor (o segundo foi como Melhor Actor
Secundário em “Imperdoável” a obra-prima de Clint Eastwood), Detective, cuja
perseguição dos seus objectivos é tão intensa que não olha a meios para os
alcançar: veja-se a cena final quando Doyle entra nas ruínas da fábrica ( de
certa maneira essas ruínas simbolizam o mundo de Doyle e também o nosso), aos
tiros e completamente obcecado em apanhar o seu inimigo, mata, sem querer, um
outro detective á frente de Russo e nem se detém quando o vê morto, reafirma ao
seu chocado colega sua intenção (ou será obsessão?) em apanhar o francês, recarrega a sua arma e continua
atrás de Charnier…a última imagem é das mais significativas de todo o filme:
uma sala em ruínas, sem ninguém e onde se ouve um tiro antes do écran ficar
negro e um epilogo contar o resto da história.
Friedkin,
filma uma Nova York suja, corrupta e violenta, com grande intensidade, é, no
entanto, na sequência da perseguição de Doyle ao metro de superfície que está o
grande momento do filme e é aqui que a obra descola de todas as outras. Toda a
sequência é filmada em tempo real e numa só vez (ou seja a duração da cena
corresponde exactamente ao que foi filmado), utilizando diversas cameras
espalhadas ao longo do cenário, no carro e no comboio (não deixa de ser
excitante ver as cenas, filmadas de
outra viatura em movimento, emque se vê
ocarro, por baixo da linha férrea, em
perseguição ao comboio) . O resultado final é fruto de um hábil trabalho de
sala de montagem (também premiado com o respectivo Óscar).
A cena, que dura
cerca de cinco minutos e meio é um verdadeiro must cinematográfico, o
espectador é envolvido na cena e não são raras as vezes em que nos desviamos
dos potenciais obstáculos que vão surgindo no trajecto tal como se fôssemos o
próprio Doyle ao volante. Extremamente excitante e absolutamente realista.
Muitas vezes imitada mas nunca ultrapassada. Friedkin voltaria a filmar duas excitantes
perseguições automóveis em “To Live and Die in L.A. - Viver e Morrer em Los
Angeles” (1985) e “Jade - Jade”(1995); “Ronin - Ronin” (John Frankenheimer,
1999) também teria uma emocionante perseguição automóvel nas ruas de Paris, mas
nenhuma delas se revelou tão importante e excitante como as de “French
Connection” e de “Bullit” que permanecem como sendo as melhores perseguições
automóveis da história do cinema.
Vencedor de inúmeros prémios, entre os quais
oito nomeações para os prémios da Academia, que se traduziram em cinco Oscares,
incluindo Melhor Filme do Ano e Melhor Realizador, “French Connection”,foi o primeiro filme com classificação “R” (“
Restricted” , que em Portugal podemos considerar como sendo “para Maiores de 16
anos”) a ganhar os principais prémios da Academia, foi um grande sucesso de bilheteira, que levou
a uma continuação (o termo sequela só apareceria anos mais tarde) intitulada “French
Connection II – Os Incorruptíveis contra a Droga nº2” (John Frankenheimer,
1975) com Gene Hackman e Fernando Rey a retomarem os seus papéis e com a acção
a decorrer em Marselha. De certa maneira, ajá citada cena final acaba por ser o fio condutor da continuação.
Apesar
de datado (todo o visual do filme espelha bem a época em que foi feito),
“French Connection” é uma obra-prima do cinema, um filme-referência da década
de 70 do século passado.
Em 2005, o filme foi seleccionado pela
Biblioteca do Congresso para preservação no Museu Nacional do Cinema dos
Estados Unidos por ser cultural, histórico e esteticamente significativo. Nota: as imagens e vídeo que ilustram o texto foram retiradas da Internet
Lisboa, 30 de
Junho de 1985, na Cinemateca Portuguesadecorria um ciclo dedicado a Jean-Luc Godard, realizador Francês e um
dos nomes responsáveis pela chamada “Nouvelle Vague” (Nova Vaga) do cinema
Francês dos anos 60. Ia ser exibido o filme “Je Vous Salue Marie – Eu Vos Saúdo
Maria” (1984), inédito no circuito comercial nacional, que já causara alguma
polémica no Festival de Cannes quando um espectador, descontrolado, atirou uma
tarte com creme de barbear à cara do realizador e fora proibido em vários
países católicos e até mesmo o Papa João Paulo II dissera que “o filme fere
profundamente os sentimentos dos crentes”. Alguém, respeitosamente, respondeu
ao Santo Padre perguntando-lhe se ele não sabia que só entra no cinema quem
quer.
Nesse dia, um grupo de cidadãos furiosos, defensores da
moral e dos bons costumes, montou uma vigília á porta da Cinemateca para tentar
impedir que o filme fosse exibido por ofender, no seu entender, a imagem de
Maria. O filme transpõe a história de Maria, José e Jesus para a época
contemporânea, o que automaticamente causou polémica, ainda mais com direito a
alguns nus frontais da jovem Maria, levando a que, aquilo que para uns era
poético, para outros fosse uma blasfémia total.
Apesar da grande
confusão originada, com policia á mistura e tudo, o filme acabou mesmo por ser
exibido, com algum atraso e toda esta polémica e publicidade gratuita levaram a
que o filme fosse um dos grandes sucessos do realizador.
Alguns anos mais
tarde, Lisboa voltaria a ser palco de uma polémica quase idêntica, mas desta
vez o filme estreou no circuito comercial obteve um enorme sucesso comercial e
pôs o seu realizador debaixo de fogo durante anos.
Em “A Última
Tentação de Cristo”, assistimos á passagem de Jesus Cristo na terra, a sua vida
enquanto homem e os desafios que enfrentou como qualquer ser humano faz e
também á última tentação a que foi sujeito já na cruz.
Em 1956, depois de
muitas indecisões, Martin Scorsese entra num seminário decidido a ser
padre.Quando chegou a altura de tomar
os votos, o jovem Scorsese foi assaltado por sérias dúvidas que o levaram a
abandonar esta ideia. Em bom tempo o fez, canalizando a sua atenção para o cinema,
onde se formou em 1964.
Desde sempre que
Scorsese queria fazer um filme sobre avida de Jesus Cristo, mas faltava-lhe a matéria em que se basear, porque
ele não queria imitar as grandes obras do cinema mundial sobre o tema. Queria
algo que, apelaria, anos mais tarde,de
“o meu filme mais pessoal”.
Em 1972, enquanto
filmava “Boxcar Bertha – Uma Mulher da Rua”, Barbara Hershey, a actriz
principal desse filme, deu-lhe a conhecer o livro “The Last Temptation of
Christ”, escrito em 1951 e publicado em 1953, por Nikos Kazantzakis, escritor e filósofo
grego, no qual o autor dava a conhecer um Cristo diferente, cheio de dúvidas
sobre o seu papel no universo, um carpinteiro odiado pelos judeus por colaborar
com os romanos ao fazer-lhes cruzes que são depois usadas para crucificar os
seus pares. A actriz pediu ao realizador que transformasse o livro em filme e
que ela gostaria de interpretar o papel de Maria Madalena. Scorsese adorou o
livro. Kazantzakis expunha ali as mesmas dúvidas que Martin Scorsese tivera
anos antes. Tratou logo de adquirir os
direitos de adaptação e, em finais da década de 70,pediu a Paul Schrader, que já escrevera o
excelente “Taxi Driver” (Martin Scorsese, 1976), que transformasse o livro num
argumento. Scorsese tinha encontrado o seu Cristo, mas ainda iria ter de
esperar algum tempo até o levar até ao grande écran.
Inicialmente, este
seria o projecto de Scorsese a seguir a
“The King of Comedy – O rei da Comédia” (1983). Com um orçamento de cerca de
14.000.000 de dólares e filmagens em Israel, para, nas palavras do próprio
realizador ”tornar mais realista o filme”, com Aidan Quinn como Jesus, Ray
Davies como Judas, Barbara Hershey como Maria Madalena e Sting como Poncio
Pilatos, as filmagens eram para ter início em outubro de 1983. Porém, problemas
de logística a nível das localizações (Israel não apresentava a segurança
necessária a toda a equipa) e também devido a alguns protestos de vários grupos
religiosos, a produção começou a atrasar e acabou por ser cancelada em dezembro
desse ano. Em 1986, a Universal mostrou-se interessada no projecto. Scorsese
ofereceu-se para realizar o filme em 58 dias por 7.000.000 de dólares e a
produção recebeu luz verde para avançar. Mas desta vez, os problemas puseram-se
ao nível artístico: com a excepção de Barbara Hershey, todos os outros
desistiram dos seus papéis.
O realizador não desistiu e escolheu outros actores
( Robert DeNiro, um “habitué” nos filmes do realizador, foi convidado para o
papel de Jesus, mas devido a outro compromisso, teve de recusar). A produção
teve início em outubro de 1987, com as filmagens a decorrer em Marrocos
(cenário idêntico a Israel e também mais barato) e, apesar da dificuldades
postas pelo prazo apertado e da necessidade de muito improviso a ter que ser
trabalhado no próprio set, a rodagem terminou dentro do prazo estipulado, em
dezembro de 1987. Agora era tempo da sala de montagem dar forma e vida á visão
do realizador.
O filme abre com
um “travelling” vertiginoso (quase como se o Espírito de Deus descesse á terra)
que vai terminar num plano vertical sobre um homem deitado na terra (Jesus, o
escolhido por Deus para cumprir a sua missão, as vozes que estão na sua cabeça
e que ele não compreende o que pretendem
de si)
Aquilo que vemos no écran é um Cristo confundido
e pouco esclarecido sobre o propósito da sua missão e o que realmente querem
dele, para isso, vai magoar Deus, até
lhe ser explicado o que pretendem dele e fá-lo ao fabricar cruzes para os
romanos; Judas, ao contrário do que falam os Evangelhos, era o mais devoto dos
Apóstolos, cuja traição a Cristo foi para o salvar da própria humanidade e
quem, em última instância, salva Cristo de sucumbir à Tentação e morrer
condignamente em vez de o fazer como um ser humano comum; Maria Madalena, a
prostituta que ama Jesus, quere-lo só para si e não aceita que ele lhe seja
roubado, para o atingir, ela prostitui-se com todos os homens que encontra,
acabando eventualmente por ser salva por um Jesus pré-messiânico, na dramática
cena do apedrejamento onde Jesus tenta, em vão, explicar á multidão o que Deus
pretende.
Um elenco de luxo, onde se incluem os nomes
de Willem Dafoe, naquele que, se exceptuarmos o papel de Sargento Elias em
“Platoon – Os Bravos do Pelotão” (Oliver Stone, 1986), será talvez a melhor sua
interpretação; Harvey Keitel é Judas, o
Primeiro Apóstolo (novamente ao contrário da história conhecida), encarregado
de matar Jesus pela sua traição, acaba convencido pelo próprio a ajudá-lo a
perceber a sua missão. O actor, outro “habitué das produções de Scorsese,
apesar do seu sotaque nova-irquino, tem uma prestação ao nível de tantas outras
que nos habituou em inúmeras produções;Barbara Hershey no papel de Maria Madalena,
ama e é amada por Jesus, que a troca por desígnios mais altos, a bonita actriz
tem aqui o seu melhor desempenho; Harry
Dean Stanton, é o Apóstolo Paulo que, na sua vida alternativa, Jesus encontra a
pregar sobre o messias que morreu na cruz; o realizador Irvin Kershner(no papel de Zebedeu, o responsável pelo
apedrejamento a Madalena) e o cantor David Bowie, no papel de Pôncio Pilatos,
entre outros, que contrbui para tornar este filme um verdadeiro entretenimento.
Onde o filme se torna verdadeiramente
magistral é na cena do Gólgota onde, graças à realização excepcional de
Scorsese, vemos Cristo crucificado a ser tentado por Satanás para escolher uma
vida normal e surgem então as tão polémicas imagens que puseram o mundo cristão
em polvorosa: Jesus e Maria Madalena, casados, a fazer amor em sua casa. São
cerca de cinco minutos em que somos postos perante uma espécie de vida
alternativa de Cristo. Muito pouco tempo para criar tão grande polémica, uma
vez que logo de seguida, a tentação termina e a história segue o seu curso como
a conhecemos.
Apesar da polémica que acompanhou o filme,
este conseguiu um sucesso moderado em países católicos e não católicos, críticas
divididas, assim como a opinião pública. Não raro foi assistir-se a grupos de
pessoas junto das salas de cinema a tentar convencer potenciais espectadores a
não verem o filme. Portugal, como habitualmente, não foi excepção nesta
situação. No meio de tanta polémica, o filme acabou por receber uma nomeação
para os Oscares da Academia, precisamente para o seu realizador.
Desde o inicio do filme até á crucificação no Gólgota, assistimos a um
olhar diferente, brilhante em alguns aspectos, e bonito da vida de Cristo a
partir duma abordagem não tradicional e raramente vista, tornando a "A
Última Tentação de Cristo" uma pequena obra-prima no universo
cinematográfico, mas uma grande obra-prima no universo do realizador Martin
Scorsese.
Nota: As imagens e vídeo que ilustram o texto foram retiradas da Internet