O Tempo passa sem parar, como um rio que corre em direcção ao mar, dissipa-se nas brumas da Memória colectiva... É o Tempo que serve a memória ou é a memória que serve o Tempo?
domingo, 15 de dezembro de 2013
“Toute une Vie” – Toda uma Vida – A nossa Alma Gémea
Quantas vezes é que já nos interrogámos
sobre o facto de termos ou não, algures, uma alma gémea, alguém que partilha os
nossos gostos, a nossa maneira de ser, de pensar, de estar? Provavelmente fazemo-lo
vezes sem conta, sem sequer nos apercebermos disso.E se um dia, por acaso,encontrássemos essa alma gémea? Como é que
iriamos reagir?, o que é que faríamos? Qual seria a sua (dela, alma gémea)
reacção?Foi o que, em 1974,Claude Lelouch, realizador francês de renome
tentou responder com o seu filme “Toute une Vie – Toda uma Vida”.
Em “Toda uma Vida”, assistimos àhistóriade várias gerações de duas familias, cujos descendentes estão destinados
a encontrar-se, nunca o fazem, apesar de se cruzarem algumas vezes em diversas
ocasiões, mas só o farão no final.
Claude Lelouch é um observador do
mundo,gosta de contar a história desse
mundo através de melodramas. O realizador costuma dizer “que só existem duas ou
três histórias que vale a pena contar”, e resumem-se todas a uma ideia só:
Homem encontra Mulher, as variações que esta ideia permite é que são quase
infinitas.. O melhor exemplo desta ideia é contado no filme “Une Homme et Une
Femme – Um Homem e Uma Mulher”, de 1966, o mais famoso e mais premiado filme do
realizador. Nele, um homem e uma mulher encontram-se, apaixonam-se e acabam por
se separar. Com esta pequena e simples ideia, o realizador contou uma dasmais belas histórias de amor de que há
memoria na história do cinema. Ganhoudiversos prémios incluindo a Palma de Ouro no festival de Cannes e dois
Óscares da Academia e foi um sucesso enorme nas bilheteiras de todo o mundo.
Tudo o que Lelouch filmou depois deste
filme, mais não foram do que as tais variações sobre a mesma ideia, das quais
saliento “Une Homme et Une Feme: Vingt ans Dejá – Um Homem e Uma Mulher: 20
anos depois” (1986), uma espécie de continuação de “Um Homem e Uma Mulher”,
ondeAnne e Jean-Louis (as personagens
desse filme), se reencontram passados vinte anos; o fabuloso“Les Uns et Les
Autres – Uns e…Os Outros” (1981) onde Lelouch conta a história de quatro
familias de franceses, alemães, russos e Americanos, seus amores e frustações
através da música, uma paixão comum que os une; neste “Toute Une Vie – Toda uma
Vida”, o realizador vai ao extremo de contar a história de um encontro que
demora um século para acontecer! A ideia, desenvolvida pelo realizador e pelo
argumentista Pierre Uytterhoeven, é simples e absolutamente genial pelo facto
de a vermos desenrolar-se num contexto
que envolve o século XX praticamente todo.
Os primeiros 20 minutos de filme são a
preto-e-branco, mudos, acompanhados por uma partitura musical tocada em piano e
com os diálogos reproduzidos em cartões entre as cenas (homenagem aos irmãos
Lumière e aos primordios do cinema) e perante os olhos do espectador surge a
história dos avóse dos pais de Sarah e
Simon, as duas personagens cujas vidas serãomoldadas e vividas ao sabor dos grandes acontecimentos do século XX: Da
Primeira Grande Guerraá
Segunda Guerra Mundial, do Holocausto ao nascimento do Estado de Israel, da
Crise dos Mísseis de Cuba á geração Beat dos anos 60.
O passado, como
cedo se percebe, afecta o presente. Por conseguinte, a visita inicial ás
gerações passadas, acrescentaalguma
substância ás suas personalidades: Sarah, afilha de sobreviventes dum campo de concentração, é tão perturbada
quanto o seu sofrido e amoroso pai, que nunca consegue ultrapassar totalmente a
perda da mulher, apesar de ser um homem de negócios bem sucedido. Quando, em
adolescente, ela se apaixona pelo cantor pop Gilbert Bécaud (o próprio a
interpretar-se a si mesmo), o seu oposto, Simon, é preso por roubar alguns
discos de Bécaud; mas talvez o melhor resumo destas vidas paralelas seja a cena
em que Simon foge da prisão, rouba um automóvel, tem um acidente e é
transportado para o hospital, no qual está também Sarah internada depois duma
tentativa de suícidio porque Gilbert Bécaud jánão quer saber dela
Da mesma maneira, as suas carreiras vão
surgindo enquanto fazem a caminhada para a maturidade: ela evolui de menina
mimada e aborrecida que experimenta de tudo até se tornar numa meticulosa
consciência social; ele, por seu lado, vai de condenado a fotógrafo de
comerciais e realizador de filmes porno a realizador respeitado (aqui,
excluindo a parte dos filme porno, a história adquire algum carácter
autobiográfico já que Lelouch começou a filmar publicidade antes de fazer
longas-metragens), que procura a sua alma gémea, seguindo as indicações de um
antigo companheiro de prisão que, a dado momento, lhe diz que se ele encontrar
outra pessoa que, como ele, goste de três cubos de açúcar no café, terá
encontrado uma alma gémea.
“Toda uma Vida”
está constantemente em transição entre o sonho e a realidade. As histórias que
vemos, não se limitam a interligar-se, elas transformam-se umas nas outras, tal
como acontece muitas vezes nos sonhos. Começamos com a história deum cameraman, a brincar no parque com a sua
nova camera (e através dela vê o mundo) , vê uma jovem que admira o seu
brinquedo novo, apaixona-se por ela (simbolizando a eterna ligação romântica
entre filmes e a vida. Um ciclo inteiro de vida é registado através da camera,
incluindo o nascimento da filha do casal). Chamado para ir combater na I Guerra
Mundial, ele morre na frente de batalha. O general que entrega a medalha á
viúva, vê as atenções centradas em si quando casa com uma dançarina, é pai, e
depois descobre que a sua mulher tem um caso. Depois, ele entra num quarto em
que tudo se transforma para dar lugar ao assassinato da família Romanovdurante a Revolução Russa (parece que estamos
numfilme de David Lynch e não de Claude
Lelouch!), mas regressamos rapidamente ao mundo do realizador francês no
momento em que acontece o tradicional encontro “rapaz conhece rapariga” numa
estação de comboio durante a ocupação da França na II Guerra Mundial . É nesta
altura que o filme deixa as imagensa
preto-e-branco e surge a cor. O sonho passa á realidade.
O filmenão se pode considerar do tipo experimental
porque tudo aquilo que vemos no écran, saiu directamente da cabeça dos
argumentistas (principalmente de Lelouch). Até acuriosa intercepção das épocas e dos
acontecimentos parece natural e até lógica. Não houve nenhuma invenção para o
filme é apenas e só um objecto-maravilha, um caleidoscópio de estilo, histórias
e notícias relatadas através de material filmado. Tudo isto, dificilmente,
seria tão bem trabalhado se não fosse agenial direcção de actores, aliada a fabulosos planos-sequência e
“travellings”mágicos da autoria de
Claude Lelouch que brilha na sequência de perseguição a pé da polícia a Simon nas ruas próximas dos "Champs Elysées", toda ela filmada de camera na mão ao estilo reportagem televisiva; ou na sequência em que Simon foge da prisão num carro a alta velocidade e bate noutro carro na estrada, o realizador repete a batida várias vezes mostrando ângulos ligeiramente alterados. Até no próprio genérico inicial, passado na viragem do século XIX para o século XX, filmado a preto-e-branco, Lelouch permite-se uma brincadeira: agradece a toda a gente que participa no filme e depois vão surgindo os nomes, por ordem alfabética, mas não diz quem faz o quê, subvertendo a ordem do genérico.
Com “Toute une
Vie – Toda uma Vida”, Claude Lelouchdemonstrou, tal como faria anos mais tarde com “Les Uns et Les Autres –
Uns e os Outros”, que as ideias mais simples são as mais geniais.
Nota: As imagens e vídeo que ilustram o texto foram retirados da Internet
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