Dentro
do género policial, surgiu, hà uns anos, o sub-género thriller e dentro deste,
recentemente, surgiu uma via chamada narrativa fragmentada, em que ao
espectador são-lhe mostradas, ao longo do filme, cenas de um quotidiano que à
partida pouco ou nada terão a ver com a narrativa principal, mas que de certa
maneira, vão influenciar essa mesma narrativa.
Shutter Island |
Em 1987 "Angel Heart - Nas
Portas do Inferno" (Alan Parker) foi um bom exemplo desta via. Harry Angel, um detective privado (Mickey
Rourke numa das suas últimas boas interpretações), é encarregado de encontrar um antigo músico que
desaparecera sem deixar rasto e que tinha uma dívida de honra para pagar a
alguém que o ajudara no inicio da sua carreira (Robert DeNiro, demoníaco). A
investigação vem a tornar-se muito
reveladora para o detective. Mais recentemente, esta tendência foi explorada de
forma quase brilhante em “Memento – Memento”, realizado por Christopher Nolan
em 2000. Nele, Leonard Shelby (Guy
Pearce), um homem com lapsos de memória,
utiliza pequenas notas e tatuagens para tentar encontrar o homem que ele pensa
ter morto a sua esposa. Finalmente a trilogia Bourne (Doug Liman & Paul
Greengrass, 2002-2007), em que Jason Bourne (Matt Damon), tenta, a todo o
custo, recuperar a memória, descobrir quem é e porque é que é uma autêntica máquina
mortífera. Todos os filmes são permanentemente atravessados por fragmentos de
um passado em que Jason Bourne influenciou ou foi influenciado pelo mesmo. Já
“Shutter Island”, apesar de se situar dentro deste mesmo sub-género, é uma obra que se coloca a si mesma num patamar
mais elevado.
Boston,
1954, Teddy Daniels e Chuck Aule, dois Agentes Federais são destacados para
investigar o desaparecimento de um paciente no hospital psiquiátrico de
Ashecliffe situado em Shutter Island. Recebidos de modo hostil, quer pelos
guardas, quer pelo pessoal médico e auxiliar, os dois vão-se apercebendo que
existe algo mais naquela instituição do que o simples desaparecimento dum
doente.
Baseado
no romance homónimo de Dennis Lehane, autor de “Gone Baby Gone”, que foi
adaptado ao cinema com o título de “Vista pela última vez…” realizado por Ben
Affleck (foi a sua estreia como realizador…auspiciosa por sinal…), em 2007 e de
“Mystic River”, realizada por Clint Eastwood em 2003 e sobre a qual nada há a
dizer a não ser que é uma obra-prima.
A obra que deu origem ao filme |
Publicada
em 2003, a obra foi desde logo considerada como opção para uma possível
adaptação cinematográfica no mesmo ano, mas diversos atrasos levaram a que o
projecto ficasse a marinar durante algum tempo dentro da gaveta dos estúdios da Columbia Pictures. Finalmente em 2007 uma
co-produção entre a Columbia e a Paramount, juntamente com o interesse
demonstrado pelo realizador Martin Scorsese em avançar com a adaptação, esta
viu a luz do dia em Março de 2008.
Em
“Shutter Island”, o espectador é levado a questionar-se sobre o quanto daquela
história rocambolesca, de doentes que fogem e depois reaparecem sem marca
alguma de terem fugido, de traumas de guerra (Daniels, assaltado pelas memórias
do massacre que ele próprio ajudou a fazer nos guardas alemães desarmados, o
seu passeio nocturno pelo meio dos cadáveres dos judeus), de traumas familiares
( o espírito da sua falecida esposa que Daniels não consegue esquecer e que lhe
pede constantemente para a deixar partir), será verdade. Tudo isto surge em
imagens fragmentadas ao longo de toda a investigação que decorre durante o
filme e que o fazem oscilar entre o policial negro ( o visual e os maneirismos
dos Agentes Federais são decalcados dos policiais negros das décadas de 40 e 50
do século passado…não é por acaso que o filme se passa em 1954) e o filme de
suspense, ao mais puro estilo de Hitchcock (toda a sequência passada nas
escarpas rochosas e na gruta e uma homenagem directa ao mestre do suspense).
Leonardo DiCaprio, cada vez mais um actor |
Com
um elenco de primeira, encabeçado por Leonardo DiCaprio, no papel de Teddy
Daniels, o cada vez mais Scorsesiano actor (aqui na sua quarta colaboração com
o realizador), volta a surpreender na forma como interpreta o violento e
instável agente federal. O actor agarra o papel e interpreta-o quase na
perfeição.
Martin Scorsese, o saber como dirigir actores |
Sabendo
como o realizador lida com os actores e actrizes conseguindo arrancar deles
verdadeiras lições de como actuar (basta lembrar Ellen Burstyn em “Alice já não
mora aqui”, Oscar de Melhor Actriz; “Toiro Enraivecido” que deu o Oscar de
Melhor Actor a Robert DeNiro; Paul Newman, Oscar de Melhor Actor em "A Cor do Dinheiro"; Joe Pesci
, Melhor Actor Secundário em “Tudo bons Rapazes”; ou aquele que, certamente,
será o papel da vida de Daniel-Day Lewis em “Gangs de Nova York”), não será de
estranhar que DiCaprio se esteja a revelar cada vez mais um bom actor e que
filme, após filme, (quer seja dirigido por Scorsese ou não), vai revelando um talento que teimava
em estar escondido nos seus primeiros filmes, afastando-o cada vez mais da
imagem de “teenager”que marcou os seus
primeiros filmes. Mais secundários, mas igualmente impecáveis temos ainda Ben
Kingsley, Mark Ruffalo, Emily Mortimer e esse verdadeiro senhor da
interpretação que é Max von Sydow, o que torna grande parte de “Shutter Island”
um filme feito de interpretações.
Quando
vemos, no inicio do filme um navio surgir do meio do nevoeiro numa imagem quase
sobrenatural, pensamos que se trata de um filme de terror, mas graças à habilidosa realização de
Scorsese, cedo se percebe de que o filme vai muito para além desse género,
apesar haver momentos em que a banda sonora é inexistente, tornando-os
insuportáveis ao nível do suspense criado e cenas em que a banda sonora as
torna perfeitamente perturbantes e nalguns casos memoráveis. É aqui que entra a
verdadeira genialidade técnica do realizador, auxiliado pela montagem
milimetricamente certeira de Thelma Schoonmaker, editora dos seus filmes, que
nunca o filme perder o seu foco, nem a nossa atenção se dispersa . Ao longo de três quartos do filme a
fotografia é baça, irreal, quase atmosférica, no último terço ela já é
brilhante, real. É como se o realizador nos estivesse a dar um filme em dois
tempos.
Nem tudo é o que parece... |
O que ele faz nada mais é do que manipular as personagens e os seus
sentimentos ao colocar todos estes ingredientes exactamente onde o espectador
quer que elas sejam colocadas, excepto nesse fabuloso e genial plano final do
farol onde, tudo aquilo que dávamos como certo ao longo do filme, pode não ser exactamente
assim e adquire uma nova realidade.
Não sendo um filme de fácil interpretação, “Shutter
island” é, na realidade, um filme complexo, que exige alguma atenção ao
pormenor, mas uma vez que Martin Scorsese é um realizador que gosta de contar
histórias e que sempre as soube contar, tais dificuldades não se põem. Uma
coisa temos a certeza depois de se ver “Shutter island”: Uma visita a um farol,
por mais banal que pareça, nunca mais
será a mesma coisa!Nota: As Imagens e vídeo que ilustram este texto foram retiradas da Internet
Esta foi, sem dúvida mais uma agradável surpresa num cineasta que se tem revelado ao longo dos anos cada e cada vez mais versátil. Um abraço.
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