sábado, 26 de janeiro de 2013

Shutter Island - Entre a Realidade e a Demência






   Dentro do género policial, surgiu, hà uns anos, o sub-género thriller e dentro deste, recentemente, surgiu uma via chamada narrativa fragmentada, em que ao espectador são-lhe mostradas, ao longo do filme, cenas de um quotidiano que à partida pouco ou nada terão a ver com a narrativa principal, mas que de certa maneira, vão influenciar essa mesma narrativa. 
Shutter Island
   Em 1987 "Angel Heart - Nas Portas do Inferno" (Alan Parker) foi um bom exemplo desta via.  Harry Angel, um detective privado (Mickey Rourke numa das suas últimas boas interpretações), é  encarregado de encontrar um antigo músico que desaparecera sem deixar rasto e que tinha uma dívida de honra para pagar a alguém que o ajudara no inicio da sua carreira (Robert DeNiro, demoníaco). A investigação vem  a tornar-se muito reveladora para o detective. Mais recentemente, esta tendência foi explorada de forma quase brilhante em “Memento – Memento”, realizado por Christopher Nolan em 2000. Nele, Leonard  Shelby (Guy Pearce),  um homem com lapsos de memória, utiliza pequenas notas e tatuagens para tentar encontrar o homem que ele pensa ter morto a sua esposa. Finalmente a trilogia Bourne (Doug Liman & Paul Greengrass, 2002-2007), em que Jason Bourne (Matt Damon), tenta, a todo o custo, recuperar a memória, descobrir quem é  e porque é que é uma autêntica máquina mortífera. Todos os filmes são permanentemente atravessados por fragmentos de um passado em que Jason Bourne influenciou ou foi influenciado pelo mesmo. Já “Shutter Island”, apesar de se situar dentro deste mesmo sub-género,  é uma obra que se coloca a si mesma num patamar mais elevado.
   Boston, 1954, Teddy Daniels e Chuck Aule, dois Agentes Federais são destacados para investigar o desaparecimento de um paciente no hospital psiquiátrico de Ashecliffe situado em Shutter Island. Recebidos de modo hostil, quer pelos guardas, quer pelo pessoal médico e auxiliar, os dois vão-se apercebendo que existe algo mais naquela instituição do que o simples desaparecimento dum doente.
Baseado no romance homónimo de Dennis Lehane, autor de “Gone Baby Gone”, que foi adaptado ao cinema com o título de “Vista pela última vez…” realizado por Ben Affleck (foi a sua estreia como realizador…auspiciosa por sinal…), em 2007 e de “Mystic River”, realizada por Clint Eastwood em 2003 e sobre a qual nada há a dizer a não ser que é uma obra-prima.
A obra que deu origem ao filme 
   Publicada em 2003, a obra foi desde logo considerada como opção para uma possível adaptação cinematográfica no mesmo ano, mas diversos atrasos levaram a que o projecto ficasse a marinar durante algum tempo dentro da gaveta dos estúdios  da Columbia Pictures. Finalmente em 2007 uma co-produção entre a Columbia e a Paramount, juntamente com o interesse demonstrado pelo realizador Martin Scorsese em avançar com a adaptação, esta viu a luz do dia em Março de 2008.
   Em “Shutter Island”, o espectador é levado a questionar-se sobre o quanto daquela história rocambolesca, de doentes que fogem e depois reaparecem sem marca alguma de terem fugido, de traumas de guerra (Daniels, assaltado pelas memórias do massacre que ele próprio ajudou a fazer nos guardas alemães desarmados, o seu passeio nocturno pelo meio dos cadáveres dos judeus), de traumas familiares ( o espírito da sua falecida esposa que Daniels não consegue esquecer e que lhe pede constantemente para a deixar partir), será verdade. Tudo isto surge em imagens fragmentadas ao longo de toda a investigação que decorre durante o filme e que o fazem oscilar entre o policial negro ( o visual e os maneirismos dos Agentes Federais são decalcados dos policiais negros das décadas de 40 e 50 do século passado…não é por acaso que o filme se passa em 1954) e o filme de suspense, ao mais puro estilo de Hitchcock (toda a sequência passada nas escarpas rochosas e na gruta e uma homenagem directa ao mestre do suspense).
Leonardo DiCaprio, cada vez mais um actor 
   Com um elenco de primeira, encabeçado por Leonardo DiCaprio, no papel de Teddy Daniels, o cada vez mais Scorsesiano actor (aqui na sua quarta colaboração com o realizador), volta a surpreender na forma como interpreta o violento e instável agente federal. O actor agarra o papel e interpreta-o quase na perfeição.
Martin Scorsese, o saber como dirigir actores
   Sabendo como o realizador lida com os actores e actrizes conseguindo arrancar deles verdadeiras lições de como actuar (basta lembrar Ellen Burstyn em “Alice já não mora aqui”, Oscar de Melhor Actriz; “Toiro Enraivecido” que deu o Oscar de Melhor Actor a Robert  DeNiro; Paul Newman, Oscar de Melhor Actor em "A Cor do Dinheiro"; Joe Pesci , Melhor Actor Secundário em “Tudo bons Rapazes”; ou aquele que, certamente, será o papel da vida de Daniel-Day Lewis em “Gangs de Nova York”), não será de estranhar que DiCaprio se esteja a revelar cada vez mais um bom actor e que filme, após filme, (quer seja dirigido por Scorsese  ou não), vai revelando um talento que teimava em estar escondido nos seus primeiros filmes, afastando-o cada vez mais da imagem  de “teenager”que marcou os seus primeiros filmes. Mais secundários, mas igualmente impecáveis temos ainda Ben Kingsley, Mark Ruffalo, Emily Mortimer e esse verdadeiro senhor da interpretação que é Max von Sydow, o que torna grande parte de “Shutter Island” um filme feito de interpretações.
   Quando vemos, no inicio do filme um navio surgir do meio do nevoeiro numa imagem quase sobrenatural, pensamos que se trata de um filme de terror,  mas graças à habilidosa realização de Scorsese, cedo se percebe de que o filme vai muito para além desse género, apesar haver momentos em que a banda sonora é inexistente, tornando-os insuportáveis ao nível do suspense criado e cenas em que a banda sonora as torna perfeitamente perturbantes e nalguns casos memoráveis. É aqui que entra a verdadeira genialidade técnica do realizador, auxiliado pela montagem milimetricamente certeira de Thelma Schoonmaker, editora dos seus filmes, que nunca o filme perder o seu foco, nem a nossa atenção se dispersa  . Ao longo de três quartos do filme a fotografia é baça, irreal, quase atmosférica, no último terço ela já é brilhante, real. É como se o realizador nos estivesse a dar um filme em dois tempos. 
Nem tudo é o que parece...
    O que ele faz nada mais é do que manipular as personagens e os seus sentimentos ao colocar todos estes ingredientes exactamente onde o espectador quer que elas sejam colocadas, excepto nesse fabuloso e genial plano final do farol onde, tudo aquilo que dávamos como certo  ao longo do filme, pode não ser exactamente assim e adquire uma nova realidade.
    Não sendo um filme de fácil interpretação, “Shutter island” é, na realidade, um filme complexo, que exige alguma atenção ao pormenor, mas uma vez que Martin Scorsese é um realizador que gosta de contar histórias e que sempre as soube contar, tais dificuldades não se põem. Uma coisa temos a certeza depois de se ver “Shutter island”: Uma visita a um farol, por mais banal que pareça,  nunca mais será a mesma coisa!

Nota: As Imagens e vídeo que ilustram este texto foram retiradas da Internet

1 comentário:

  1. Esta foi, sem dúvida mais uma agradável surpresa num cineasta que se tem revelado ao longo dos anos cada e cada vez mais versátil. Um abraço.

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