domingo, 23 de setembro de 2012

A Filha de Ryan – Uma Obra-Prima quase Ignorada



       Em 1968, David Lean,  nome  ao qual se associam  frescos históricos,  grandes epopeias,  verdadeiras superproduções cinematográficas, encontrava-se de férias  em Capri, na Itália, quando recebeu de Robert Bolt, argumentista com quem já tinha trabalhado em “Lawrence da Arábia” (1962) e “Doutor Jivago” (1965), seus filmes anteriores, um argumento baseado na “Madame Bovary” de Gustave Flaubert. Lean não se mostrou interessado e escreveu a Bolt a explicar porquê.  Sugeriu então ao argumentista que, se rescrevesse a história, mas que mudasse a localização da acção para outro país, então seria um caso a pensar. Bolt concordou com a ideia e os dois passaram então cerca de um ano a desenvolver a história.

A vila fictícia de Kirrary
         Em 1916, na  vila de Kirrary, situada na costa ocidental da Irlanda,  Rose Ryan é uma jovem com um espírito libertino, aborrecida com a vida que leva na vila onde vive e que anseia casar com um homem que a leve dali para fora.  Apaixona-se por Charles Shaughnessy, professor  da escola local, viúvo e mais velho que ela, casa-se com ele pensando que a sua vida passará a ser mais emocionante, mas  cedo descobre que ficou tudo na mesma.  Mais tarde surge o Major Randolph Doryan, comandante do destacamento Britânico, por quem Rose irá sentir uma irresistível atracção sem medir as consequências que daí advirão, não só para eles, como também para Charles.
A obra que inspirou o filme 
O argumento final de  Robert Bolt mantém  alguns paralelismos com o romance original de Flaubert, nomeadamente no tocante ao trio central, assim temos: uma heroína que paga pelos seus caprichos, no romance, Emma mata-se,   no filme,  Rosy sofre um castigo bem maior;  Charles Bovary, o marido intruído, é  médico no romance, enquanto no filme  a personagem,Charles Shaughnessy, é, tal como Robert Bolt fora, professor; finalmente, o amante viril que preenche todas as fantasias da heroína, no romance é Rodolphe Boulanger , no filme é o major Doryan,  que fica como o terceiro vértice do triângulo amoroso. Em ambos, livro e filme, a consumação do acto ilícito acontece na floresta nebulosa, no meio de flores e fetos. É uma das mais bonitas cenas de amor que alguma vez Lean filmou.
Charles Shaughnessy & Rose Ryan
Para os papéis principais, a escolha não foi fácil. David Lean queria alguns sonantes como Paul Scofield, Peter O’Toole, Richard Harris ou Richard Burton, que, por uma ou outra razão, não estavam disponíveis e acabou por se decidir por Robert Mitchum, que lhe foi sugerido por Anthony Havelock-Allen, produtor do filme, e Lean lembrava-se dele em alguns filmes dos anos 40 e 50. Sarah Miles, na altura era Sra. Bolt, foi escolha óbvia já que a personagem de Rose Ryan fora escrita a  pensar nela. O major Doryan fora pensado com Marlon Brando em mente, que inicialmente aceitou, mas que depois acabou por ter de desistir já que problemas com a produção de “Burn! - Queimada” (Gillo Pontecorvo, 1969), que Brando estava a protagonizar na altura estiveram na origem da desistência. Lean acabou por escolher Christopher Jones que vira numa produção Britânica “ The Looking Glass War” (Frank Pierson, 1969). 
Alec Guiness recusou o papel do Padre Hugh Collins e este acabou por ser interpretado por Trevor Howard, um dos grandes actores britânicos de sempre. A sua personagem é uma das mais importantes do filme, a sua figura, de cabelos brancos e costas curvadas pelo peso dos anos, carrega os pecados de toda uma comunidade de que tem de cuidar, representando a força moral da população num lugar deslumbrante e quase esquecido por deus. 
Michael, o idiota da vila, mudo, expressão patética será um dos fios condutores das diversas histórias que se entrecruzam ao longo do filme. Será testemunha, idiota e muda, de muitos segredos, mas ao mesmo tempo capaz de os comunicar a todos. Interpretado por John Mills, outro nome sonante do cinema britânico, que seria, muito justamente, diga-se, premiado com o Oscar da Academia para Melhor Actor Secundário, um dos dois únicos Oscares que esta produção receberia sendo o outro o de Melhor Fotografia para Freddie Young que tem aqui um trabalho de cortar a respiração.
A paisagem imensa que serve de pano de fundo ao filme

 Desde a primeira cena, logo após a Abertura, ao som da magnífica música de Maurice Jarre, onde vemos a costa Irlandesa e uma minúscula figura a correr em direcção à falésia, percebemos que estamos num filme de proporções enormes e uma paisagem imensa. É um filme feito de planos gerais, com a câmara colocada bem longe do cenário filmado, não só a citada cena inicial, como os rochedos, as praias, a própria vila, imagens belíssimas, enquadramentos cuidadosamente estudados ao pormenor, tudo é preparado com um cuidado e uma dedicação próprias de quem sabe aquilo que quer mostrar, bem ao estilo de David Lean. 
Mas seria na sequência da tempestade que o realizador mostraria todo o seu talento e perfeccionismo.Foram vários meses de espera até que surgisse a tempestade que o argumento descrevia. Por diversas vezes a equipa recebia o aviso  duma tempestade,  deslocava-se para os locais exigidos e apenas conseguiam filmar uma ou duas horas no máximo, já que depois a tempestade desaparecia por si. Quando finalmente estavam reunidas as condições necessárias para filmar, Freddie Young orientava as cameras e os técnicos, Lean dirigia os actores, exigindo deles o máximo, causando mesmo alguns ferimentos  nos intérpretes . Desde manter um disco de vidro a girar em frente ás lentes da camera para que estas estivessem sempre secas, até envolver a camera num saco de plástico, não fosse esta ser atingida por chuva, salitre e ficasse impedida de ser utilizada,  Lean não poupou esforços para que a cena ficasse perfeita e ao nível de algumas cenas dos seus clássicos anteriores, como a cena do êxodo de comboio em “Doutor Jivago”, ou o ataque a Damasco em “Lawrence da Arábia”.
A rodagem teve início em Março de 1969 e terminaria a 24 de Fevereiro de 1970, praticamente um ano demorara a rodagem, entre avanços e recuos, problemas entre o realizador e os actores e também entre os próprios, tornaram “ A Filha de Ryan” um filme quase amaldiçoado. Uma história de amor contada em 220 minutos, duração inicial e pré-exibida aos distribuidores, parecia longa demais e foi criticada pela sua  longa duração e ritmo lento. Lean concordou e  sentiu-se na obrigação de remover cerca de 17 minutos antes da estreia, as cenas removidas nunca mais foram restauradas, nem sequer localizadas. O filme acabaria por estrear numa versão remontada de 196 minutos, que se manteve até à edição em DVD em 2007, que trouxe o filme até à sua duração de 206 minutos e que tem permitido uma nova abordagem ao filme e redescoberta duma pequena obra-prima dum realizador que deu tantas outras obras-primas ao cinema.
O filme teve um sucesso moderado em todo o mundo e foi um dos maiores sucessos de bilheteira na Grâ-Bretanha, que manteve o filme em exibição durante quase dois anos seguidos. Os críticos, pelo contrário, iriam assassinar o filme, apesar das altas expectativas, pelo facto do realizador ter feito três superproduções de sucesso seguidas, depois de o terem visto, foram por água abaixo. Para eles, Lean estava acabado, assim como o seu estilo de cinema.
Iriam passar 14 anos até que David Lean voltasse a filmar. 14 longos  anos em que foram feitas várias  tentativas de fazer uma nova versão de “Mutiny on the Bounty – Revolta na Bounty” (Frank Lloyd, 1935) e que fosse diferente da versão de 1962, realizado por Lewis Milestone,  que falharam. O realizador, vencedor de dois Oscares como Melhor Realizador e cujos filmes, até então, lhe tinham granjeado mais de vinte Oscares da Academia em mais de cinquenta nomeações, iria regressar, aos 76 anos de idade, atrás das cameras com o seu opus final, o maravilhoso “A Passage to India – A Passagem para a Índia”, em 1984.

Nota: as imagens e vídeos que ilustram este texto foram retirados da Internet



                       
           

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

O Quarto Kennedy - Uma ficção quase real




Há livros que só pelo simples facto de terem sido escritos em determinada época, acabam, mais tarde ou mais cedo, quer pela narrativa, ou pela altura em que surgem, merecer alguma atenção.
   
Em 1991, Mário Puzo (1920-1999), escritor americano, publicou "The Fourth K - O Quarto Kennedy", um romance sobre política e abuso de poder que, alguns anos após a sua publicação, se viria a revelar quase profético.
   

   A acção passa-se num futuro próximo. Na Casa Branca, Francis Xavier Kennedy, presidente dos Estados Unidos e sobrinho de John, Robert e Edward Kennedy, enfrenta a maior crise da sua carreira. Teresa, a sua única filha, foi raptada por terroristas que estão a fazer exigências inaceitáveis. Em Roma, na Semana Santa, o Papa é assassinado por um grupo de extremistas, ao mesmo tempo que dois cientistas ameaçam a nação com um engenho nuclear conservado em lugar secreto. Rodeado de conselheiros que lhe são extremamente leais e de Helen Du Pray, a primeira mulher vice-presidente dos Estados Unidos, tentam encontrar a melhor solução para esta crise e todos têm consciência do risco de assassínio que paira sobre todas as presidências dos Kennedy. Quando os acontecimentos se precipitam e Teresa é assassinada e uma bomba nuclear explode em Nova York, Francis Kennedy decide agir, sem olhar ás consequências dos seus actos, nem que isso implique entrar em conflito com quem realmente manda no país e serão esses mesmo que tomam a decisão de o destruir.
   
Mario Puzo 
   Mario Puzo, que em "O Padrinho"(1969), "O Siciliano" (1984) e em "O Último dos Padrinhos"(1996) retratou o universo da Mafia, volta-se agora para o mundo da política. Puzo usa o seu profundo conhecimento dos mecanismos ocultos do poder e daquilo que leva os homens a realizar acções desesperadas. Através de cenas de horror inesperado e quase brutal e de momentos de grande intensidade, "O Quarto Kennedy" desenvolve-se ao ritmo alucinante de um projéctil a caminho do seu alvo.
   
    Dez anos depois da sua publicação, a 11 de Setembro de 2001, a cidade de Nova York sofre dois atentados terroristas que resultam na destruição das Torres do World Trade Center e mais de 3000 mortos, num dia negro para o mundo e principalmente para a América. De repente, sem saber porquê, apercebemo-nos quão assustadoramente real pode ser a ficção.

   Tendo em conta que Puzo escreveu o livro muito antes do 11 de Setembro, percebe-se que a sua presciência é enorme, já que a narrativa é assustadora, directa e chocante nos paralelismos que se estabelecem entre aquela ficção e os acontecimentos que se passaram não só nesse dia como nos meses que se seguiram. As decisões que Kennedy toma, em destruir o Sultanato de Sherhaben, após a morte da filha na ficção, são em muito semelhantes aquelas que foram tomadas na realidade e que levaram ao ataque ao Iraque; também a explosão nuclear, quando acontece, muda dramaticamente o curso da acção, já que o presidente vai ao Congresso dirigir-se ás duas alas, Democrática e Republicana, enfrentando a possibilidade de exoneração (a fazer lembrar os escândalos da presidência de Bill Clinton), mas ao impôr a Lei Marcial no país, ele consegue convencer os seus maiores antagonistas a apoiá-lo no que quer que queira fazer. Aqui a obra mostra um pouco do que é o Poder Absoluto com todas as suas consequências e Puzo diz-nos que caminhamos perigosamente para esta situação.
   
   A América que Puzo nos mostra, é uma América que não é muito diferente daquela que existe hoje, onde ainda são as grandes fortunas que tudo controlam desde os meios de comunicação ao próprio poder seja ele jurídico, económico, social e se encarregam de escolher, fazer eleger e controlar quem está na Casa Branca ( no livro estão representados pelos membros do Clube Sócrates, que é o verdadeiro inimigo do presidente Kennedy). A única diferença da obra para realidade é a existência de uma personagem conhecida como "O Oráculo", com cem anos de idade e que todos consultam em busca de opiniões e conselhos, que funciona como uma espécie consciência de cada personagem e, numa perspectiva mais abrangente, da obra.
   
   Mario Puzo inventa um história em que as personagens, as situações, o enredo e os subenredos se misturam numa tapeçaria, que só um autor assim consegue fazer, tantas que são as voltas e reviravoltas na acção que o leitor se sente como se estivesse a andar numa montanha russa.
Se substituirmos os acontecimentos da ficção por acontecimentos reais que a história registou em anos recentes, então ficamos com uma obra de ficção quase proféctica. 
Será mesmo assim?


Nota: as imagens que ilustram o texto foram retiradas da Internet


EMERSON, LAKE & PALMER II

            O trio, depois de um longo período de férias, sentindo-se revigorado, reuniu-se novamente em 1976, nos “Mountain Studios”, em Mo...